quinta-feira, 17 de novembro de 2022

DEZASSETE

 
   17. Entrei nos anos 90 confinado num quarto, deitado na varanda a escutar ecos chegados do pavilhão onde tocavam Xutos, Peste & Sida, Censurados. Não tive direito a festa. O primeiro concerto haveria de ser, pela mão das irmãs, no velho Estádio de Alvalade: The Rolling Stones na digressão Urban Jungle. Pouco depois, senão no dia seguinte, rebentava a guerra no Kuwait para fama e proveito de um rapaz orelhudo que apresentava telejornais. Vinguei-me a ler biografias da colecção Rei Lagarto e os livros nelas e por elas sugeridos. Assim me chegaram o primeiro Rimbaud, Burroughs, Nietzsche. Este último bateu-me forte e é nele que penso ao dar com uma fotografia da primeira comunhão, ridiculamente aperaltado e com o desconforto indisfarçado no rosto. Já naquele tempo não queria nada com Deus nem com igrejas, faltava à catequese para requisitar livros na itinerante da Gulbenkian e deitava-me no jardim a folheá-los. Histórias de cowboys, maioritariamente. Nunca consegui vislumbrar sentido no culto do sacrifício representado na figura de um homem cravejado de espinhos e pregado numa cruz, mas menos sentido ainda encontrava quando me obrigavam a confessar de joelhos pecados que podiam ser redimidos com orações. Devo ter começado a ser escritor no confessionário, com as mentiras inventadas para haver pecados que confessar. Ocorriam-me ontem tais pensamentos enquanto ouvia a mais velha num recital de Natal ali para os lados da Lourinhã. Já no termo da função, foi sugerido ao público que acompanhasse o coro: «Alegrem-se os céus e a Terra / Cantemos com alegria / Já nasceu o Deus menino / Filho da Virgem Maria». Era vasta a audiência, largo o templo, péssima a acústica, pelo que não perdi mais uma oportunidade para me reinventar nestes sacros contextos. Fui inventando rimas próprias num tom de voz mais para dentro do que para fora, é certo, mas ainda assim suficientemente alternativo ao festival de beatas e de santos com imolações na boca. Ficou mais ou menos assim: «Alegrem-se ó homens na Terra / Cantemos com folia / Com pão e vinho na mesa / Da noite faremos dia.»

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