quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

DEZANOVE

 
   19. Uma máquina de escrever faz-me companhia no 6.º B. Fico horas fechado no quarto, a ler, a ouvir música, a olhar pela janela a lavareda na torre da Petrogal. Entulho, ferrugem, contentores abandonados, cemitério de carros onde germinará a Exposição Mundial de 1998. Aquilo a que chamam ambiente universitário ser-me-á sempre estranho, evito tanto quanto possível os corredores assépticos da faculdade, o bar pesaroso em que raras vezes alguém surgia com o rosto a sorrir. Ou então eram os meus olhos que transportavam tristeza. Alguém certo dia o apontou, com sublinhados eróticos que eu não estava disponível para entender. À noite, perco-me nas ruelas do Bairro Alto até cair de borco. Regresso a casa e não durmo, espero que a solidão me visite numa página em branco pronta a ser dactilografada. Escrevo: «para lá dos rios / as luzes estremunhavam silêncios / sublinhavam ondas / na ausência do sol». As luzes eram resquícios de vida na Margem Sul, no outro lado do Tejo. Mas porquê os rios? Não devia ser só um? Mais tarde aceitei haver na formulação adoptada o rio deixado para trás, berço natal, e este agora em que os olhos se afundavam húmidos de cansaço. Ambos confluíam para uma mesma foz de «enigmas intraduzíveis». Recebi em tempos correspondência de uma respeitável poetisa portuguesa que tecia considerações sobre o livro em que estes versos vieram a ser publicados 10 anos depois de haverem sido escritos. Referindo-se especificamente a este poema, dizia ela não conseguir entender a última estrofe: «escutei as águas chapinhadas contra o casco / chorei o ventre das moléculas /deixei-me cair para trás». Também eu não percebo muita coisa. Desde logo, porque não me atirei antes para a frente.

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