domingo, 22 de janeiro de 2023

TEATRO

 
Esta noite sonhei que tinha ido ao teatro ver uma peça chamada “Fala com Ela”. Era sobre pessoas que falam com pessoas em coma. Inda a peça não ia a meio, foi subitamente interrompida por alguém que, em tronco nu e de cueca fio dental, saltou da plateia para o palco destratando uma das actrizes em cena. Bramando «Coma Fake, Coma Fake», dirigiu-se à actriz em estado vegetativo ordenando que saltasse da cama e fizesse o pino. À minha destra, uma senhora idosa, provavelmente um pouco surda, perguntava: «Coma o quê?» «Coma Fake», tentei esclarecer. «Mas porque raio querem agora Corn Flakes? Que peça tão estranha.» Supondo ser escusado tentar explicar o que eu próprio não entendia, atentei-me ao discurso do protestante. Que era um insulto para todas as pessoas em coma terem escolhido uma actriz vivinha da silva, que havia pessoas em coma cheias de problemas sem conseguirem trabalhar, que se perdia ali uma excelente oportunidade para empregar uma actriz de facto em coma, que representasse o coma como o coma deve ser representado. Esforçava-me eu para entender os impactantes argumentos expostos com insofismável clareza, já outro indivíduo saltava para o palco dando conta da discriminação de que era vítima diariamente por lhe ter sido amputada uma perna. Que desde o Saci do Sítio do Picapau Amarelo nunca mais conseguira trabalho à sua medida. Impávido e sereno, eu assistia ao espectáculo tentando compreender se aquilo era um espectáculo dentro do espectáculo, alguma dessas modernices em que a performance se intromete na representação como faca a trinchar o lombo narrativo. Não me sobrou muito tempo para cogitações, pois nisto de meditar dou com o Bonga no palco a trautear aquela coisa do «Ai, pegaram aqui o currumba / Me contaram sem saber». Mas de onde vem este agora, meu Deus? O público parece ter apreciado a intervenção, pois começou toda a gente a acompanhar o músico angolano como se soubesse o significado de currumba. Nisto, o palco enchera-se de humilhados e ofendidos a reivindicarem por melhores condições de vida, direito ao trabalho, a paz, pão, saúde, educação, e um coro de cante alentejano liderado pelo Abrunhosa apregoava a reforma agrária, e os professores queriam ser representados por professores, o Nogueira que se dedicasse à colheita das nozes. Só os administradores da TAP não se importavam de ser representados por quem quer que fosse, desde que os indemnizassem pelos danos causados à sua impoluta reputação. Caramba, que espectáculo! Só visto. Eu continuava a tentar descortinar, na minha ingenuidade, se não seria tudo um grande embuste dramatúrgico, se todas aquelas aparições não teriam sido previamente sugeridas pelo Tiago Rodrigues como forma de fazer chegar o grandioso espectáculo ao Festival de Avignon e às páginas do The New York Times. O próprio Gonçalo Frota, a certa altura, apareceu em palco reclamando mais espaço para a cultura nos jornais. A cultura ela mesma apareceu em cena reclamando mais público. Um indivíduo de cadeira de rodas desbaratava contra o mundo em particular e o estado do país em geral. Encafuado naquela cadeira havia anos, via-se impedido de fazer aquilo de que mais gostava e para o qual nascera com um talento inigualável: os 100 metros com barreiras. «Mas podes saltar à corda», disse o primeiro dos protestantes. «Como?», perguntou ele. Trouxeram uma corda que atravessava o palco. Com quatro actores a segurarem a corda, dois numa ponta, outros dois na outra, começaram a movê-la em círculos que desenhavam um sorriso de Mona Lisa no ar. Depois, dois grupos pegaram no tipo de cadeira de rodas. Um grupo de cada lado da corda, começaram a projectar o indivíduo de um lado para o outro como que em câmara lenta. Ele sorria de contentamento e felicidade, o povo unira-se fazendo face às dificuldades, era um extraordinário momento de superação, o monólogo comovente que justifica qualquer espectáculo teatral. Uma lágrima saltou-se-me do canto do olho no preciso instante em que o Bonga desata a cantar «Tenho uma lágrima / No canto do olho». Tudo teria terminado da melhor maneira, não fora um último e derradeiro protesto. Perdido em emoções labirínticas, foram-me a vulnerabilidade e a empatia interrompidos por um remate chegado dos balcões no anfiteatro. Alguém lá do alto gritava: «Estudassem, estudassem.» Aquela voz era-me familiar, mas não conseguia identificar o seu proprietário. Pedi de empréstimo à velhota dos Corn Flakes os binóculos de ópera com que ela se fixara aos acontecimentos. Apontei na direcção do balcão de onde chegava o bramido em voz familiar: «Estudassem, estudassem.» Qual não foi o meu espanto ao concluir que quem daquele modo troava era, isso mesmo, nem mais nem menos, o Miguel Relvas, com o cabelo cheio de gel e um lenço violeta no bolso do casaco cintado. Porra. Dei um salto na cama, estava sem pinga de sangue. «O Relvas não, o Relvas não», dizia eu de mim para comigo, meio acabrunhado, meio alucinado.

3 comentários:

Célia disse...

Que texto hilariante! Como bem retrata, diria de forma magistral, aquela espécie de betoneira que são algumas atividades oníricas que nos deixam de rastos ao acordar! Senti-me numa montanha-russa ao som do " Estudassem" do Relvas.
Fartei-me de rir! E precisava tanto...
Obrigada pelo momento.
Boa semana.

hmbf disse...

Boa semana.

Miguel disse...

«Coma Fake»

Mas isso come-se?!... Ponham-se a fazer peças a partir do Almodovar e depois queixem-se. Kitsch é kitsch. Aquilo é dose de cavalo, genuíno e sem fake. Mas, atenção!, filmes com pessoas em coma podem dar castanhada. O Pedro Costa que o diga. ;-)