No N.º I da revista Telhados de Vidro (Averno, Novembro de 2003), Silvina Rodrigues Lopes (1950) publicou um pequeno ensaio intitulado A Anomalia Poética. Nele podia ler-se o seguinte: «A poesia lê-se sem ajuda de “especialistas”, e isso em nada contradiz o facto de haver nela uma memória antiquíssima e um pensamento da poiesis e da linguagem, os quais, dada a continuidade linguagem-mundo, ou linguagem-formas-de-vida, não só não podem ser circunscritos, como implicam em simultâneo o desdobrar do pensamento (de muitas maneiras e em muitas direcções), as sensações, percepções e afectos, conscientes e inconscientes.» É precisamente esse desdobramento, entendido como um desafio, que a poesia de Silvina Rodrigues Lopes nos propõe. O conjunto de textos que compõem Sobretudo as vozes, começa por ser inclassificável logo na forma. Dizemo-lo de poemas, por vir «até nós, obscuro e transparente, como o espírito, a inquietação.» (p. 15) Podíamos também falar de aforismos ou pequenos poemas em prosa. Mas não me parece que qualquer tipo de classificação possa delimitar, com maior ou menor pertinência, o campo de acção desta escrita que vale, principalmente, pela força com que procura «negar evidências» (p. 40). O acto de escrever começa por explicar-se a si próprio como um chamamento do desconhecido: «é não sei de onde que agora ouço erguer-se esta voz.» (p. 7) No seu desenvolvimento, ele aparece como construção de um lugar habitável: «Ouço e escavo as palavras até serem casas.» (p. 13) Recordemos, então, a supracitada perspectiva continuista, da relação entre linguagem e mundo, que a autora tem defendido. Repare-se que por continuidade não se deve entender identificação ou uniformaidade: «Em cada palavra, em cada troca, a garra da desigualdade crava-se fundo. Altera a circulação. A vida é morte.» (p. 20) Essa desigualdade inexorável entre linguagem e mundo, acarreta riscos: «É grande o perigo de auscultar as palavras.» (p. 59) E talvez o maior risco seja mesmo o de entender, finalmente, que «as palavras que se recusam a ser como eu. Partem-se. E avisam: não colar os bocados, dão choque.» (p. 62) Dito isto, torna-se claro que a experiência poética só pode ser uma experiência do incerto, uma experiência-limite que terá por sobreviventes as vozes que daí advêm, quais rostos que assinam o ser em todos os seus meandros possíveis. Sobretudo as vozes é um livro que contagia, precisamente, por nele se erigir uma voz livre que se aplica em nos lembrar que «há o selo da eternidade em cada instante.» (p. 31) Nele se encontra uma espécie de ontologia, onde o ser das coisas respira no ser da palavra, ou seja, no ser daquilo que nomeia as coisas. Talvez seja nesse lugar de encontro entre a coisa e o nome que a nomeia, talvez seja nesse lugar irreconhecível e indizível, longe «do estar aqui, que é o nosso viver» (p. 34), talvez seja nesse lugar “ilógico”, poético, diverso, talvez seja aí que morem as vozes de cada um de nós.
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