sexta-feira, 31 de março de 2006

DOIS OBJECTOS

Ainda mal abriu os olhos, a Objecto Cardíaco, noviço projecto editorial do ex-Quasi valter hugo mãe, já aparece na fachada do mundo plumitivo nacional. As razões, como todas as razões de fachada, só não são as piores por serem de fachada. Ou seja, a publicidade necessária a qualquer negócio que se pretenda erigir nos dias de hoje está garantida. Ainda por cima, ao que tudo aponta, de borla. Outras razões havia, bem mais interessantes, que justificavam uma chamada da Objecto Cardíaco à frontaria (não fosse este um país de mexericos, agitado ao ritmo das plumas ofendidas). Por exemplo: os livros. A colecção de poesia, congruentemente intitulada «aorta», abre com dois títulos desiguais: Os Animais Antigos, de João Habitualmente, e Declaração de Amor ao Primeiro-Ministro, de A. Pedro Ribeiro (n. 1968). Sobre o primeiro, informa-nos a nota introdutória acerca duma juvenília «oscilando entre o confessional e o manifesto iconoclasta». Professor da Universidade do Porto, João Habitualmente publicou o primeiro livro em 1995, pela editora Pé-de-Cabra, ao qual se seguiram outros em género distinto (crónica, poesia, artigo científico). Também do Porto, supostamente mais novo, é A. Pedro Ribeiro, que após publicações caseiras de tipo panfletário estreia-se agora em livro. Da nota introdutória retemos toda uma postura programática: «o autor faz da palavra uma arma inesgotável e vê no capitalismo o inimigo público número um». Segue-se manifesto do próprio, com encosto aos «poetas malditos» e profissão de fé na forma «sub-versiva da poesia», nos «actos provocatórios», nas «agitações espontâneas», no «terrorismo poético». Dito isto, puxemos a conclusão à metade: se Os Animais Antigos me parece ser um dos mais agradáveis livros de poesia portuguesa dos últimos anos, já a Declaração de Amor ao Primeiro-Ministro se me apresenta como um livro falhado. O livro de João Habitualmente remete-nos para um universo poético próximo do pícaro, onde o lindo pode equivaler ao irrisório e o ínfimo se apresenta como lugar da beleza que resta. Os poemas de João Habitualmente são leves sem serem ligeiros, colocam-nos na presença de mundos perdidos, sobretudo os da infância e os da ruralidade, ao mesmo tempo que procuram reconquistar, no seu seio, esses sítios de um tempo que é já pura imaginação. É disso excelente exemplo o poema O Sítio Inverso, cuja derradeira estrofe reza assim: «Inventar um sítio assim: / fazê-lo de tão sábios traços / que ao supores fugir de mim / me venhas cair nos braços» (p. 14). É precisamente esse sítio que estes poemas (re)inventam, sendo que o «tu» ao qual os versos se dirigem pode assumir múltiplas formas num jogo permanente entre a memória e a imaginação, entre o antes e o depois, entre as partidas e os regressos. Bem distinto é o livro de A. Pedro Ribeiro, cujo interesse literário se esgota em três ou quatro poemas. Dividido em três partes, este livro procura reunir alguma da intervenção «cívica» do poeta: I. Manifestos do Partido Surrealista Situacionista Libertário (PSSL), II. Orçamento Geral do Estado, III. Está Tudo Bem, Opressão Capitalista à Parte. Trata-se de uma intervenção assumidamente iconoclasta, com clara matriz nos textos de combate dos surrealistas e dos situacionistas. À sua maneira, A. Pedro Ribeiro também tem o dom de nos colocar frente a frente com um tempo perdido: esse tempo em que a poesia ainda inquietava a canalha. Agora, tempo cínico o nosso, só a hortofloricultura logra alguma histeria. Quem já escutou alguns destes poemas-notícia ao vivo, ditos pela voz de quem os escreveu, não poderá deixar de sentir alguma decepção. Quem não teve esse privilégio, talvez se indague sobre a força do panfleto. Quanto a mim, ficam aquém da qualidade poética de um Jorge Aguiar Oliveira e longe da cultura refractária de um A. Dasilva O.. No entanto, vale a pena chamar a atenção para um certo gozo que se retira da (des)construção dos textos, intercalando títulos de imprensa com fogachos do quotidiano, citações libertárias com observações delirantes. Poesia política? Poema de intervenção? A mim parece-me mais um pretexto para combater o Tédio: «Ao espelho / no aquário / peixinhos vermelhos / e uma canção // Aparte isso / tudo é tédio / no café / da televisão» (p. 37). P.S.: cuidado com as gralhas. Não sendo eu leitor muito exigente no que ao problema concerne, parece-me haver por aí quem facilmente se indigne com um acento fora do lugar.

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