Ela usava pernas.
Usava saias, curtas, por causa das pernas.
As pernas eram brancas, por causa dos braços dela, e dos seios: brancos, brancos.
À noite era mais branca ainda. A noite é que era negra, como a alma dela.
A alma dela queimou-se muitas vezes: os pais eram tão baixinhos, tão estúpidos.
Mas queixava-se nunca, ela.
O pai dela era canalizador. Canalizava o seu rancor para a mãe dela. E para ela.
A mãe dela era canalizada para a telenovela.
Havia de subir na vida, ela, como estratagema para equipar os pais com asas. E com casas: havia de ser arquitecta! Se as casas voassem os pais seriam menos baixinhos, menos estúpidos.
Um dia o pai entrou pelo cano adentro e desapareceu.
A mãe entrou pela telenovela adentro e desapareceu.
Foi assim que ela saiu de casa. Sozinha, sem ninguém. Ou seja: branca.
Na rua, por momentos, respirou feliz. Mas depois chorou que se fartou e assoou o nariz.
Estava numa rua em que passavam carros negros.
Ela via os carros passar. Não eram anjos, eram carros. Se fossem anjos haviam de dirigir-se ao palácio do Rilke, aquele senhor que falava de anjos sempre que tinha a barriga cheia.
Ela nem sequer tinha fome. Nem asas, só as pernas. As pernas brancas do costume.
Parou um carro negro e uma boca aproximou-se dela:
- Entras?
Ela entrou. E o carro desapareceu por fora, e por dentro era outra coisa.
Já na casa, o senhor careca pôs as mãos nas pernas dela. No ar o cheiro do incenso de canela.
Ela passou as mãos nas pernas do senhor. E disse-lhe:
- Podemos conversar, prometo que não te conto a história da minha vida.
O senhor achou estranho:
- Conversar?
- Sim - disse ela. - Podemos ser amigos, ou quase.
- E o sexo? - perguntou o senhor, atrapalhando-se como um novato.
- Pois, não acho boa ideia conversar. Vamos comer, e se tiveres música escolhe alguma bem-disposta.
- Eu não vim aqui para... - ia a dizer o senhor, mas arrependeu-se.
O senhor tornou a vestir as calças. Foi à cozinha e abriu o frigorífico. Tinha comida enlatada, sopa, alguns iogurtes. Tirou estas coisas e pô-las em cima da mesa.
Ela comeu a sopa e dois iogurtes. Ele comeu sopa e ficou a olhar para ela.
E não houve conversas metafísicas, nem investigações físicas. Foram para a sala e puseram-se a ouvir música. Ela dançou, ele também dançou.
Ficaram cansados e o senhor disse que ela podia dormir no outro quarto.
No dia seguinte, quando o senhor acordou, ela já não estava lá. E o senhor ficou preocupado, porque queria voltar a vê-la.
À mesma hora do dia anterior o senhor voltou a passar na mesma rua. À mesma hora do dia anterior, ela entrou num carro negro, metendo primeiro a sua perna esquerda, branca, e depois a sua perna direita... branca. Reparou que se dirigiam para um sítio diferente. Logo percebeu: aquele senhor não era o do dia anteiror.
Saíram do carro e pouco depois entraram na casa do segundo senhor. Estava lá o senhor do dia anterior.
- O que é isto? Um assalto? - perguntou o segundo senhor.
- Não, esteja descansado - respondeu o primeiro senhor. - Estava à procura dela, e vi-a passar no seu carro. E depois, é só isto... antecipei-me!
Desta vez foi ela a escolher a música. Ainda havia sopa no frigorífico, mas ela resolveu tirar uns pastéis de bacalhau do congelador. Pôs a água a ferver para o arroz. Quando regressou à sala, os dois senhores ainda estavam lá.
Depois conversaram os três. Mas não conversaram muito. Beberam um licor de poejo.
Pareciam amigos. Mas a certa altura ela disse:
- Vou sair, quero ver o sol nascer. Hoje quero estar sozinha. É a minha segunda noite fora de casa.
- Podemos ir contigo - disseram os dois senhores.
- Voltaremos a encontrar-nos, sim. Mas hoje vou sozinha.
Saiu de casa e dirigiu-se para as docas.
Ouviu o som das gaivotas. O cheiro a peixe à passagem na lota.
Os primeiros barcos chegavam da pescaria da noite com as redes cheias. O mar estava calmo, nem as ondas quebravam.
A ondulação tocava na areia com o impulso da água a conhecer as pedras, mudando-as de lugar.
Uma brisa afastou-lhe os cabelos e ela sentiu frio. Cruzou os braços sobre o peito e encolheu a cabeça entre os ombros.
Depois pensou que na terceira noite começaria a cobrar 100 euros, só pela companhia, já que tencionava continuar virgem. Tinha 15 anos acabados de fazer. Precisava de juntar dinheiro para continuar a estudar. Não se tratava de acreditar no amor. Era um problema prático (a falta de dinheiro) mas não pretendia fazer sexo com estranhos.
A vida dos peixes é mais bela que a dos pescadores, pensou ainda, mas achou que só estava a pensar nisto por se tratar de uma imagem poética.
Estava com frio e a vida era dela.
Rui Costa, in Da Vida Bela, vários autores, coordenação de Sara Monteiro, Fundação Odemira, Setembro de 2010, pp. 17-24.
1 comentário:
Obrigada Henrique.Não conhecia este texto.beijinhos.PB
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