sábado, 14 de julho de 2012

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL

Esta é a terceira edição, pela Antígona, de um dos textos mais inspirado(re)s de Henry David Thoreau: A Desobediência Civil. Traduzido por Manuel João Gomes, sucede-o Defesa de John Brown, uma comunicação encomiástica, proferida a 30 de Outubro de 1859, tendo por objecto um abolicionista revolucionário que acabou por ser julgado e executado depois de ter assistido vários escravos numa fuga para o Canadá. Liga os dois textos uma ideia profunda de justiça, uma ideia alicerçada na moral e na dignidade da pessoa humana, deveras afastada das conveniências do Direito e das opressões impostas pela lei do Estado. Este afastamento, porventura impossível de resolver, mantém ainda hoje uma acesa controvérsia entre ética e lei. A lei legitima práticas privadas de ética e absolutamente imorais aos olhos da opinião pública, enquanto a ética obriga a uma censura subjectiva dessas mesmas práticas: «Nunca a lei tornou um homem mais justo; é por causa do respeito pela lei que até alguns bem-intencionados se tornam todos os dias agentes da injustiça» (p. 18). Podemos assim distinguir dois planos onde a justiça se exerce, o plano onde ela se faz aplicar pelo recurso à lei decretada pelo poder político e o plano onde ela transcende as intenções desse mesmo poder, podendo reivindicar junto de homens em particular acções contrárias ao que foi decretado pela sociedade. Estes textos, e os exemplos oferecidos pelos intervenientes Thoreau e Brown, tornam claro o desfasamento existente nas democracias ocidentais entre as exigências de uma organização social erigida a partir de interesses meramente económicos e a noção de uma justiça universal que garanta a defesa dos desprotegidos. Manuel João Gomes faz bem em alertar o leitor para os perigos de uma interpretação enviesada, podendo A Desobediência Civil ser aproveitada para fins que nunca foram, claramente, os do seu autor. A revolta aqui promovida contra as democracias ocidentais é uma revolta que tem na sua origem um entendimento do papel da Justiça no Estado, não promove tanto um liberalismo selvagem como defende um sistema filantrópico liberto de “abusos e perversões” economicistas. Não defende qualquer tipo de ditadura, concentrando-se na defesa dos indivíduos e da sua inviolável liberdade. Insurgindo-se contra a escravatura e contra guerras expansionistas, Henry David Thoreau aponta as armas aos submissos zeladores de um Estado que viola uns e explora outros como se tal fosse imprescindível para a defesa de uns poucos. Não é. Por isso Thoreau dirige-se aos que lhe são próximos, incita-os a uma desobediência que seja coerente com os princípios morais da humanidade, uma desobediência cujo objectivo seja a justiça proclamada pela força da razão, ao contrário de uma justiça proclamada pela força das entidades coercivas dos Estados opressores. Procura inspirar uma minoria, crente de que uma minoria inspirada pode fazer tremer o poder que traz as massas nas suas mãos. O exemplo de John Brown serve este acicatar de vontades, este espicaçar da indignação contra o comodismo, contra a subserviência e contra o servilismo perpetuadores de um poder injusto: «As leis injustas existem. Deveremos nós contentar-nos com obedecer ou devemos antes fazer tudo para as emendarmos? Deveremos cumpri-las até conseguirmos emendá-las ou deveremos transgredi-las sem mais?» (p. 27). As dúvidas são prontamente desfeitas: «Tenho de evitar, dê por onde der, submeter-me ao erro que condeno» (p. 28). Thoreau incita, então, à coerência, a actos de insurreição que podem passar, por exemplo, pela recusa no pagamento dos impostos, pressionando os governos até, se necessário for, a prisão se tornar o lar de todos nós: «A prisão é, num estado esclavagista, o único local onde um homem livre pode morar com honra» (p. 31). As consequências são por demais reconhecidas, a solidão e o isolamento esperam, numa primeira instância, todos aqueles que se revoltam contra os paradigmas da sociedade onde estão inseridos, todos aqueles que declaram abertamente guerra ao Estado. É o preço a pagar por uma vida livre. Se sempre foi assim, porque haveria agora de ser diferente?

3 comentários:

Isabel disse...

Se sempre foi assim, porque haveria agora de ser diferente?
E ainda há quem pense que sou perigosa :)

hmbf disse...

Perigoso é ficar quieto.

Isabel disse...

É mesmo isso mas foi o hmbf que disse, não fui eu.