A poesia é como a água, intromete-se por todo o lado. Por mais que a tentemos barrar, ela descobre sempre uma fenda, minúscula que seja, para atravessar as barreiras que lhe são impostas e inundar terrenos, salas, corpos. Os últimos anos têm sido de cimento armado para a poesia. As editoras com distribuição alargada ou deixaram de publicar poetas ou publicam apenas o que deles vai dando à costa em prosa. Fica o poema confinado a distribuições restritas e deficientes, pequenas editoras e projectos editoriais quase invisíveis, edições de autor levadas de porta em porta, de mão em mão, de boca em boca. Atravessamos um período de respiração assistida, no que à poesia diz respeito. A visibilidade nas livrarias tende, deste modo, a encolher, tão atafulhados que estão os espaços com a parangona das novidades, promoções duvidosas e campanhas oportunistas. No entanto, a poesia persiste, os poetas insistem e os livros vão aparecendo às centenas. Se têm leitores, não sabemos. Os leitores são um espelho da sociedade, e a sociedade não é exigente, alimenta-se do supérfluo e do superficial, cultiva o efémero em despreza o perene. Prefere o espectáculo à reflexão, o ruído ao silêncio. A sociedade convive pessimamente com o silêncio, por isso andam as pessoas pelos locais mais barulhentos, procuram conforto na confusão das vozes, metem auscultadores nos ouvidos, colam os telemóveis aos tímpanos, desesperam se não falam, porque a sociedade actual tem uma ânsia tremenda de conversa. Sobretudo fiada. O preâmbulo vai longo, é certo, mas impõe-se quando nos deparamos com um livro de um autor português publicado por uma livraria portuguesa e galega, de seu nome Orfeu, sedeada em Bruxelas. Em 2010, fizeram-se 1000 exemplares de primeira viagem. O número assusta, tendo em conta as tiragens caseiras de 100, 150 e pouco mais exemplares, quando o nome parece merecer o risco. Em Portugal, Fernando Machado Silva (n. 1979) jamais mereceria o risco. Ninguém sabe quem é. Um doutorando de Filosofia Contemporânea jamais merecerá a atenção, vá lá, de um figurante nos programas da Júlia Pinheiro. Abre o livro com duas epígrafes sacadas a Joaquim Manuel Magalhães e Helder Moura Pereira, o que poderia dizer algo acerca desta poesia não fosse esta uma poesia que procura mais dizer do que dizer-se. O esforço colocado na organização dos poemas é notório, repartindo-se a produção de cinco anos (2004-2009) por cinco partes: apresentação, cartas e promessas, confissões, memórias, despedidas. O resultado, ainda que de um modo algo involuntário, acaba por sugerir um drama e seus respectivos actos. Da partida de Lisboa à manhã de todas as noites, o que encontramos é um processo de separação/distanciamento com objectos e focos de análise díspares. Por vezes, penetramos os campos do amor; outras vezes, enredamo-nos em cenas domésticas; não raramente, cedemos ao lirismo intimista de quem olha para si com refinado espírito autocrítico. Tome-se de exemplo este ALGUMA COISA HÁ-DE FICAR: «não há nada de bom / nisto que eu sou / ficando todos / os esforços mortos // mau filho / desinteressado dos laços / que tanto lhe querem bem / péssimo amante / precoce infértil possessivo ciumento / pior amigo que nunca / tendo todos os meios / de comunicação e em nenhum pega // sou no fundo / Caim Iago Otelo / melhor deixarem-me / a um canto junto das ervas daninhas / talvez depois de morto / uma gerbéria dos meus pés». Desenha-se o auto-retrato em minúsculas, como o daninho das ervas, e recorrendo a pontuação mínima, como qualquer coisa de respiração incontida que vamos detectando ao longo dos poemas (sobretudo quando se alongam). A desmedida não é excessiva, parecendo-nos por vezes que, aqui e acolá, um corte nas ervas não ficaria mal. Há, no entanto, motivos vários de interesse na poesia de Fernando Machado Silva: a deslocação da urbe para o campo, a opção por uma auto-ironia em detrimento do pessimismo de pacotilha de quem anda com a ruína pendurada ao pescoço, um confessionalismo teatral que incorpora a vulgaridade de certas imagens no tecido exigente de temas ditos nobres. Alguns remates escusados, é certo, uma revisão que ficou por fazer, é verdade, mas, ainda assim, um bom prenúncio.
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