Num estilo Conta-me Como Foi sem interlocutor à vista, um velho resolve debitar para o papel as suas memórias como se falasse para o filho ausente. O ambiente inicial, que nos transporta para um cenário onde a ficção se cruza com a realidade histórica, leva-nos a supor uma certa amargura no discurso do protagonista, uma decepção perante o rumo tomado pela História. Somos enviados para os tempos da implantação da República num cenário imperialista, ditatorial, que, na realidade, não anda longe da oligarquia em que vivemos actualmente. Entre a autocracia do antigo regime e a oligarquia actual há poucas diferenças: as prisões deixaram de ter grades e os inimigos deixaram de ter nomes.
É de Noite que Faço as Perguntas (Saída de Emergência, Julho de 2011) foi escrito por David Soares a convite da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República. Ilustraram, de um modo pragmático, mas diversificado, conferindo assim ao texto uma dinâmica visual bastante agradável, os ilustradores Jorge Coelho, João Maio Pinto, André Coelho, Daniel da Silva e Richard Câmara. O texto perde interesse quando procura ser pedagógico, mas logra uma dimensão poética ao libertar-se desse peso. E consegue transpor as limitações de uma prosa comemorativa ao enveredar por rumos heterodoxos onde a actualidade aparece por sugestão.
Por exemplo, os homens da república misturavam-se com o povo nos eléctricos. Mas isto foi antes de chegarem ao poder. Aquilo que era, ao mesmo tempo, um desejo de liberdade e um enorme desafio, transformou-se rapidamente num triunfo do autoritarismo e numa mera utopia. Um povo culto, exigência da República, não é, de todo, o que observamos passados todos estes anos. Os índices de analfabetismo foram diminuindo em proporção com a falta de civismo, deixando-nos num limbo sobre o que possa ser a educação das massas. De resto, este álbum tem o mérito de nos afundar numa nostalgia revolucionária que obriga a repensar o presente à luz das consecutivas desilusões históricas.
No final, o velho que acabámos de ouvir, como se fôssemos todos o filho que ele não leva pela mão como pela mão foi ele levado pelo seu pai, confessa: «É de noite que faço as perguntas. Apenas me esforço por esquecer as respostas antes que amanheça». Confessa-o com um gesto terrível, o de quem ateia memórias em busca de um esquecimento apaziguador. Porque, de facto, o presente torna-se difícil de suportar ao constatarmos que chegámos aqui por um caminho que era suposto levar-nos a um lugar totalmente diferente. Neste sentido, o eléctrico da capa, presente ao longo da narrativa, surge como uma complexa metáfora da passagem do tempo. É uma espécie de cápsula onde viajamos para rumos bem definidos. As linhas do eléctrico não permitem desvios. Será isto a História?
Pressentimo-lo hoje, de tão evidente se tornar a regressão a que nos vemos coagidos. Novamente começamos a julgar a educação inútil, porque entre ela e a necessidade básica de um trabalho gera-se um fosso enorme. A própria educação transformou-se num negócio onde apenas os números importam. Os ministérios são fábricas geridas por gestores exclusivamente preocupados com orçamentos, sem tempo para definirem rumos onde o conhecimento se torne substância fundamental de uma sociedade. Porque, pelos vistos, não é, já que uma licenciatura pode ser feita em meia dúzia de meses sem se pôr os pés na Universidade.
Resta-nos isto: a cultura é dispensável se não gerar públicos lucrativos, pois nada do que é exigente ao espírito alimenta estômagos obesos. Pum! E neste rodopio vamos incrementando o medo, salvaguardado pelo vazio e pela pobreza de uma semi-escravatura laboral que serve para engordar os cofres de uma dúzia e mantém pela trela milhares de famílias que se comportam como criancinhas paupérrimas perante os acenos do consumo. É de Noite que Faço as Perguntas tem, pois, esse enorme mérito de fazer pensar sobre o presente a partir do passado. Que não temamos as respostas ao amanhecer, continua a ser o meu desejo.
É de Noite que Faço as Perguntas (Saída de Emergência, Julho de 2011) foi escrito por David Soares a convite da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República. Ilustraram, de um modo pragmático, mas diversificado, conferindo assim ao texto uma dinâmica visual bastante agradável, os ilustradores Jorge Coelho, João Maio Pinto, André Coelho, Daniel da Silva e Richard Câmara. O texto perde interesse quando procura ser pedagógico, mas logra uma dimensão poética ao libertar-se desse peso. E consegue transpor as limitações de uma prosa comemorativa ao enveredar por rumos heterodoxos onde a actualidade aparece por sugestão.
Por exemplo, os homens da república misturavam-se com o povo nos eléctricos. Mas isto foi antes de chegarem ao poder. Aquilo que era, ao mesmo tempo, um desejo de liberdade e um enorme desafio, transformou-se rapidamente num triunfo do autoritarismo e numa mera utopia. Um povo culto, exigência da República, não é, de todo, o que observamos passados todos estes anos. Os índices de analfabetismo foram diminuindo em proporção com a falta de civismo, deixando-nos num limbo sobre o que possa ser a educação das massas. De resto, este álbum tem o mérito de nos afundar numa nostalgia revolucionária que obriga a repensar o presente à luz das consecutivas desilusões históricas.
No final, o velho que acabámos de ouvir, como se fôssemos todos o filho que ele não leva pela mão como pela mão foi ele levado pelo seu pai, confessa: «É de noite que faço as perguntas. Apenas me esforço por esquecer as respostas antes que amanheça». Confessa-o com um gesto terrível, o de quem ateia memórias em busca de um esquecimento apaziguador. Porque, de facto, o presente torna-se difícil de suportar ao constatarmos que chegámos aqui por um caminho que era suposto levar-nos a um lugar totalmente diferente. Neste sentido, o eléctrico da capa, presente ao longo da narrativa, surge como uma complexa metáfora da passagem do tempo. É uma espécie de cápsula onde viajamos para rumos bem definidos. As linhas do eléctrico não permitem desvios. Será isto a História?
Pressentimo-lo hoje, de tão evidente se tornar a regressão a que nos vemos coagidos. Novamente começamos a julgar a educação inútil, porque entre ela e a necessidade básica de um trabalho gera-se um fosso enorme. A própria educação transformou-se num negócio onde apenas os números importam. Os ministérios são fábricas geridas por gestores exclusivamente preocupados com orçamentos, sem tempo para definirem rumos onde o conhecimento se torne substância fundamental de uma sociedade. Porque, pelos vistos, não é, já que uma licenciatura pode ser feita em meia dúzia de meses sem se pôr os pés na Universidade.
Resta-nos isto: a cultura é dispensável se não gerar públicos lucrativos, pois nada do que é exigente ao espírito alimenta estômagos obesos. Pum! E neste rodopio vamos incrementando o medo, salvaguardado pelo vazio e pela pobreza de uma semi-escravatura laboral que serve para engordar os cofres de uma dúzia e mantém pela trela milhares de famílias que se comportam como criancinhas paupérrimas perante os acenos do consumo. É de Noite que Faço as Perguntas tem, pois, esse enorme mérito de fazer pensar sobre o presente a partir do passado. Que não temamos as respostas ao amanhecer, continua a ser o meu desejo.
2 comentários:
"Novamente começamos a julgar a educação inútil, porque entre ela e a necessidade básica de um trabalho gera-se um fosso enorme."
É bem verdade. Na maior parte dos casos serve apenas para tomarmos consciência da semi-escravatura laboral, e é essa consciência que nos torna mais intelizes.
Se assim for, já não é mau. Mas temo que nem assim seja.
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