A paixão pelo western vem de muito cedo, quando era miúdo
e me escondia atrás dos reposteiros à espera que os meus pais se fossem deitar.
Depois ficava a ver os filmes que passavam na televisão, quase sempre
westerns ou filmes de piratas com o Errol Flynn. Apesar de nunca ter gostado do
Carnaval, a minha mãe insistia em mascarar-me. Os únicos disfarces que eu
admitia sem reclamações eram os de índio ou de cowboy, sendo que para cowboy só
podia aceitar um modelo: a camisola com tranças usada por Alan Ladd em Shane
(1953). Há quem o considere o melhor western de todos os tempos, o que está
longe de ser verdade. É um western melodramático, marcado pela presença
constante de um miúdo que há-de ter contribuído fortemente para a empatia
gerada pelo filme.
Talvez tivesse a mesma idade que Brandon de Wilde
(1942-1972), tragicamente desaparecido num acidente de viação, quando vi Shane
pela primeira vez. George Stevens (1904-1975), realizador oscarizado, rodou-o
na ressaca da Segunda Grande Guerra, onde foi operador de câmara do exército
norte-americano. O filme tem uma série de elementos que apontam para essa
experiência, nomeadamente as dúvidas levantadas sobre o uso das armas. Não é
por acaso que um dos grandes dilemas representados neste filme é o da possibilidade
de uma vida pacata, regida pela justiça e longe dos conflitos armados. Alan
Ladd (Shane) não tem a mística de outros pistoleiros, é demasiado límpido e melífluo.
Sobre ele pesa, no entanto, um passado que nos é apenas revelado implicitamente
e do qual se pretende libertar.
Ao passar casualmente pela pequena quinta de uma família tradicional,
resolve largar o coldre e juntar-se a um grupo de agricultores que ali tentam
fazer pela vida. Rapidamente se apercebe de que esse grupo de agricultores vive
ameaçado por um criador de gado que lhes pretende tomar as terras, a bem ou a
mal. Este é um dos aspectos verdadeiramente curiosos do filme, oferecer-nos a
extensão da paisagem onde pequenos agricultores tentavam sobreviver arduamente
à ganância e ambição de velhos colonos sem escrúpulos. Com a justiça distante
(a autoridade mais próxima estava a 160Km), a lei fazia-se valer pela força. Ainda
assim, estamos num momento de viragem e contenção. O próprio fazendeiro hesita
em recorrer às armas, tenta negociar com os agricultores, ameaça-os sempre no
cuidado de não poder vir a ser incriminado pela justiça.
Há ali um jogo incipiente de manipulação da moral, em função
de interesses pessoais que chocam com a necessidade de impor justiça numa nação
erigida a ferro e fogo. Shane é a personificação dessa viragem. Ele sabe que o
tempo dos pistoleiros acabou, ao mesmo tempo que se vê na contingência de o
fazer reviver. Pode um homem ser quem não é? -
pergunta-se a todo o momento. A
resposta surge no fim, depois do fazendeiro contratar um pistoleiro cuja função
seria provocar os agricultores até que estes não resistissem ao impulso de
sacar das armas e acabassem desfeitos pela rapidez e inclemência do misterioso
Jack Wilson (Jack Palance himself). O que aqui temos é, pois, o velho conflito
da natureza humana anedoticamente simplificado com a fábula do escorpião que
ferra a rã enquanto esta o ajuda a atravessar o rio. Desculpe, não o pude
evitar, é a minha natureza.
Tudo isto é filmado com um cuidado nos pormenores que
facilmente nos faz crer na angústia daquelas personagens e no que separa os
frágeis agricultores, nas suas pequenas quintas isoladas no meio de extensos
vales, e a vida na cidade, com os homens do fazendeiro ambicioso aí
concentrados. O realismo dos cenários, dos trajes, das falas, da postura das
personagens, só perde para uma excessiva simplificação da relação mantida entre
Shane e a família de agricultores que o acolhe. Marian e Joe são um casal afectuoso,
dedicam toda a atenção ao pequeno Joey, mas estão longe de parecer verosímeis. Não
seria fácil tornar explícito em 1953 o que George Stevens resolveu deixar na
sombra, o fascínio de Shane exercido sobre Marian. No filme, esse fascínio fica
mais óbvio no pequeno Joey. Mas é Marian, a mulher do mais inconformado dos
pequenos agricultores, quem ali se sente perder nas malhas de uma paixão inexplicável.
Mais tarde, Clint Eastwood mostrou-nos essa paixão de um modo
autêntico. Foi em Pale Rider (1985).
2 comentários:
um dos filmes da minha infância. estou curioso para ver o resto dos filmes que vais escrever
"Shaaaaaneeee, come back!" :(
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