O meu amigo Luís Germano tem bons genes. Também esconde
uma inventividade que, de quando em vez, lá vai partilhando, muito
timidamente, com os que lhe são mais próximos. Foi assim quando, já lá irão uns
dez anos, andámos a espalhar poemas pelas caixas de Multibanco de Caldas da
Rainha, quais professores Bambo, sob a forma de anúncios publicitários. Felizmente
ninguém deu por nada. A indiferença salvou-nos da detenção e, muito
provavelmente, de acusações sempre infundadas e caluniosas por crimes de burla.
Voltei a sentir-lhe o estro em saudosas crónicas radiofónicas lidas
aos microfones surdos-mudos da RLO (Rádio Litoral Oeste). Guardei algumas
dessas prosas para mais tarde recordar. Agora, o escritor resolveu sair um
pouco mais da carcaça do homem e, dando as mãos ao talento do rebento mais
velho, a ilustradora Bárbara Fonseca, deixou-se mostrar neste delicioso
livrinho caseiro intitulado No Verão Ninguém Morre/In Summer No One Dies. O
título bilingue tem razões de ser, algumas das quais importa sublinhar. A
Bárbara é ilustradora de méritos reconhecidos (1st Place at Amadora’s BD
Festival 2005; 3rd Place at Amadora’s BD Festival 2007; 2nd Place at Amadora’s
BD Festival 2009; Honour Prize at Virus BD 2008) que, para mal dos nossos
pecados, teve que se fazer à vida em territórios longínquos porque no seu país
não cabe o dom com que a Natureza a brindou. Se julgam que exagero, confiram
por aqui: http://barbara-fonseca.tumblr.com/.
Deste modo, os textos que acompanham as ilustrações suportam duas línguas: a de
Camões, talvez menos acessível pela origem zarolha, e a de Shakespeare, imposta
ao mundo como sendo a todos compreensível. A partir do próximo Sábado, e até 13
de Novembro, os desenhos da Bárbara poderão ser apreciados na Ó! Galeria (Rua Miguel
Bombarda, 61, 4050-380 Porto), assim como o livrinho poderá aí ser adquirido e
os textos lidos. Bem merecem! As estórias de No Verão Ninguém Morre têm na sua
raiz uma imaginação invejável. Partindo de elementos concretos associáveis às
férias de Verão, o autor desenvolve pequenas narrativas onde a realidade é
subvertida com um sentido plástico que aproxima estes textos do universo
surrealista de um Mário-Henrique Leiria. É curioso notar, logo na introdução, um
exercício de ironia sobre o olhar estereotipado que julgamos
ser o dos estrangeiros sobre nós próprios. A escrita contorce-se neste
sentido: ao mesmo tempo que de algum modo se auto-ironiza, Luís Germano expõe e
satiriza aspectos culturais que dividem os povos europeus. Veja-se como se apresenta:
«Nos poucos momentos em que não estou entregue ao ócio típico dos habitantes do
sul da Europa, sou professor bibliotecário». Mais à frente, teremos a história
de um turista que vem para Portugal passar férias, refastela-se num banquete de
sardinhas gordas e cheias de ovas, para acabar, já no seu país, a expelir um cardume
de sardinhas juvenis. Estes contos presenteiam-nos com fenómenos estranhos, transfiguram
a alegria veranil com um sentido de humor ao mesmo tempo negro e inofensivo
(como a estória do chapéu de sol descontrolado que, movido por um vento forte e
súbito, acaba por perfurar os veraneantes que debaixo dele se protegiam).
É comum encontrarmos situações destas onde as personagens são surpreendidas pelo
acaso, um acaso que lhes mina as certezas e destrói os preconceitos, deixando-as à mercê da contingência. Depois temos
aquele mundo tim-burtoniano de personagens com “defeitos de fabrico”
apartadas da normalidade (o rapaz muito peludo ou o homem-lapa), ao mesmo tempo
que temos uma normalidade que acaba por se revelar bastante perniciosa: é o
caso do homem que seguiu à risca as instruções da médica para se proteger do
sol, aplicando um protector de alto factor, acabando por ficar tão branco que
se desfez num líquido leitoso absorvido pela areia. As ilustrações da Bárbara,
com o seu traço sinuoso, fazem justiça a este universo, dialogam com ele de um
modo dinâmico, projectando coerentemente as imagens que os textos nos sugerem. Olhar
para as ilustrações coloca-nos numa posição complexa, é como se estivéssemos a
ver o nosso pensamento no instante da leitura. Não negam o texto nem o
absorvem, complementam-no com inquestionável riqueza estética. Havendo
interesse no livro, poderão sempre contactar a Bárbara ou o Luís no Facebook ou
a partir do contacto existente no link supra e neste da galeria Bootsbau: http://www.bootsbauproject.de/ .
1 comentário:
Eu gostava de encontrar um poema no multibanco...ultimamente não tiro de lá nada de jeito e um poema ou um desenho, não me reconciliaria com o sistema bancário mas tornava o uso da máquina mais apelativo.
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