Toda a minha vida foi passada a calcular o mal menor, na
merda da política, é isso sujar as mãos.
José Sócrates
A Revista do Expresso desta semana é, a todos os títulos,
memorável. Clara Ferreira Alves, sobre quem Vasco Pulido Valente escreveu, em
tempos, isto (convém não esquecer), entrevista o ex-PM José Sócrates, figura
política ambivalente que, diga-se o que se disser, consegue com esta entrevista
fazer algo de absolutamente inovador na política portuguesa contemporânea:
falar claro. Isto não quer dizer que concordemos/acreditemos na sua versão dos
acontecimentos. É apenas uma versão. Quer apenas dizer que admiramos a clareza,
e já agora a inteligência, venha ela de onde vier. O próprio prefácio à entrevista, na crónica habitual da
Pluma Caprichosa, não deixa grande espaço para dúvidas. Quem não se sente, não
é filho de boa gente. Veremos se a reacção dos visados será tão sóbria e
discreta, que é o mesmo que dizer calculista, como costuma ser. Os famigerados silêncios
do Presidente da República, outrora tabus, sempre foram muito pedagógicos. Mas
diz CFA:
«Este Governo, o de Pedro Passos Coelho, nasceu de uma
infâmia. No livro “Resgatados”, de David Dinis e Hugo Coelho, insuspeitos de
simpatias por José Sócrates, conta-se o que aconteceu. O então
primeiro-ministro chamou Pedro Passos Coelho a São Bento para o pôr a par do PEC4,
o programa que evitava a intervenção da troika em Portugal e que tinha sido
aprovado na Comissão Europeia e no Conselho Europeu, com o apoio da Alemanha e
do BCE, que queriam evitar um novo resgate, depois dos resgates da Grécia e da
Irlanda. Como conta Sócrates (…), Barroso sabia o quanto este programa tinha
custado a negociar e concordava com a sua aplicação, preferível à sujeição aos
ditames da troika, uma clara perda de soberania que a Espanha de Zapatero e
depois de Rajoy evitou. Pedro Passos Coelho foi a São Bento e concordou. O resto,
como se diz, é história. E não é contada por José Sócrates, que um dia a
contará toda. No livro, conta-se que uma personagem chamada Marco António
Costa, porta-voz das ambições do PSD, entalou Passos Coelho entre a espada e a
parede. Ou havia eleições no país ou havia eleições no PSD. Pedro Passos Coelho
escolheu mentir ao país, dizendo que não sabia do PEC4. Cavaco acompanhou. E
José Sócrates demitiu-se, motivo de festa na aldeia».
Podemos acreditar que tudo se passou exactamente assim. Para
as nossas vidas, é indiferente saber o que há de verdade ou conspirativo nestes
jogos palacianos. Ganhamos o mesmo, vão-nos ao bolso sem vergonha nem piedade.
Mas em dia de manifestação, depois de umas autárquicas com os resultados
conhecidos, esta água oxigenada que pretende lavar as mãos do PS é a cereja no
topo do bolo. O invisível Seguro bem pode continuar entregue às suas reflexões.
39 anos de democracia praticamente divididos entre dois partidos, os
socialistas e os sociais democratas, com o apoio do apêndice populista em
múltiplas e sempre interesseiras versões, que quase não se distinguem pela sua
tradição oligárquica, distribuindo tachos pelos lacaios bem comportados, promovendo
eventos ruinosos, políticas desastrosas e conluios criminosos, para não falar
da eterna promiscuidade entre poderes político e económico, dando cabo da
indústria, da agricultura, do pequeno comércio, trouxeram-nos aqui, a isto, a
este lugar tão precário e irritantemente ardiloso que é o Portugal dos coelhos
e dos portas e dos sócrates e dos barrosos e dos santanas… Um Portugal
enraizado nessa coisa que em certos sítios se chama corrupção, mas que por cá
vai assumindo a curiosa e eufemística corruptela de amiguismo com seus BPNs,
cavacos, limas, loureiros… Este país é mesmo uma anedota. Clara Ferreira Alves conta-a
com estilo, José Sócrates é a personagem ideal. Foi, claralvesmente, objecto de
campanhas difamatórias torpes e de repugnantes ataques ao homem, foi aquele
saco de boxe que os portugueses adoram ter à mão para se esquecerem do quão
mesquinhos são quando toca a pôr as acções em conformidade com o pensamento. Faz
o que eu digo, não faças o que eu faço, é o lema preferido deste povo, que se
pela por um corrupto a quem apontar para, enquanto o aponta, não ter que se
apontar a si próprio. Como tantas vezes se escuta por aí, “pudesse eu e faria o
mesmo”. São assim as pessoas, mais não se pode esperar delas. É por isso muito
provável que quando voltarem a ser chamadas a exercer o mais nobre dos seus
direitos cívicos, elas já tenham recalcado os relvas, os gaspares, os machetes,
as ministras swap (isso é tudo muito complicado), enfim os sócrates. Daí que
seja tão importante não permitir que a probabilidade se transforme em facto.
1 comentário:
Olha, olha, já nem me lembrava dessa badalhoquice do VPV. É útil não esquecer, sim, sobretudo porque, volta e meia, quase sucumbo ao estilo da escrita do homem (o conteúdo, esse, muitas vezes, nem para estrume serve).
Enviar um comentário