My Darling Clementine/A Paixão dos Fortes (1946) ocupa um
lugar especial nos westerns produzidos durante a década de 1940. Desde
Stagecoach/Cavalgada Heróica (1939) que John Ford (n. 1894 – m. 1973) não se
dedicava ao género, abrindo com este filme as portas para uma década de ouro
onde às aventuras dos heróis do Velho Oeste foi acrescentada uma perturbadora fragilidade
humana. My Darling Clementine parte de um acontecimento real que faz parte do
imaginário norte-americano, o tiroteio que opôs os irmãos Earp, entre os quais
o mitológico Wyatt Earp, à família Clanton. Já aqui falei de Gunfight At TheO.K. Corral/Duelo de Fogo (1957), obra onde John Sturges (n. 1911 – m. 1992)
procurou recriar esses acontecimentos com maior veracidade. O título do filme
de Ford sugere algo mais para lá de uma mera reconstrução histórica, sendo
muitas as liberdades tomadas no decorrer da narrativa.
Clementine (Cathy Downs) é uma jovem mulher que
aparece em Tombstone à procura de Doc Holliday (Victor Mature), indivíduo de
boas famílias, bem formado, cujo vício no jogo e doença (era tuberculoso) o
afastaram da humidade doméstica para o fervor selvagem. Tornou-se amigo de
Wyatt Earp, combatendo a seu lado no tiroteio de O.K. Corral. O filme parece
ter, deste modo, duas partes, delineadas pela chegada de Clementine à cidade. Há
um antes e um depois desta aparição, a qual obrigará Doc Holliday a
confrontar-se com o seu passado e Wyatt Earp com o seu presente. Numa das cenas
finais, Wyatt (mais uma magnífica interpretação de Henry Fonda) pergunta ao
barman de serviço se ele alguma vez esteve apaixonado, ao que este responde: «No,
I’ve been a bartender all my life». O apontamento pode parecer anedótico, mas carrega
um peso dramático no contexto em que é dito. Wyatt estava apaixonado por
Clementine, ex-mulher daquele que era agora o seu melhor amigo: Doc Holliday.
O duelo tantas vezes iminente entre ambos desloca-se de
um lugar físico para o terreno psicológico, penetrado pelo realizador com
ambientes e situações onde parece estar a ser julgada permanentemente a
cumplicidade entre as duas personagens. Posso estar equivocado, mas não me
recordo de outro filme de John Ford onde o close-up seja recurso tão recorrente
para sublinhar a dimensão psicológica das personagens. Além dos três actores
acima referidos, há que mencionar Linda Darnell. Actriz com um final abrupto –
morreu durante um incêndio quando tinha apenas 41 anos -, desempenha aqui o
papel de Chihuahua, a amante de Doc Holliday. Ward Bond, actor fetiche de John
Ford a quem já me referi várias vezes, é Morgan Earp, o mais velho dos irmãos
Earp. Reencontramos igualmente Walter Brennan, desta feita no papel menos
simpático do pai da família Clanton. Outro velho conhecido é John Ireland, que
fez de Bob Ford em I Shot Jesse James (1949). Este elenco permite ao realizador
apostar no desempenho dos actores, podendo até ser interpretada como homenagem
a inclusão no argumento da visita de um actor à cidade onde decorre a acção.
A sequência oferece contrates tipicamente fordianos, comédia e tragédia equilibram-se sobre o ténue fio civilizacional que então
caracterizava o Oeste. Granville Thorndyke (Alan Mowbray) é o pobre
actor de serviço numa cidade onde a sensibilidade dramática dos cidadãos se
manifesta mais pelo gatilho do que pela boa educação. Retido pelos irmãos
Clanton no saloon local, é obrigado a divertir as hostes. Tenta recitar William
Shakespeare, mas o famoso trecho do Hamlet não converte a insensibilidade
poética do abrutalhado Ike Clanton. Salvam-no de pior destino a nostalgia de
Doc Holliday e o espanto de Wyatt Earp, figuras onde se pressente um fundo
moral que escapa aos demais. Nas suas diferenças, é isto que os une. Para
que conste, Clementine ficará na cidade. E o seu nome, que Wyatt diz ser belo
como nenhum outro, invoca uma esperança fundamental para a
sobrevivência daquelas pessoas. Ouvi-lo é como ouvir, pela primeira vez, os sinos
da igreja num local onde nem ao barbeiro um homem podia ir descansado.
Ressonância religiosa, esta metáfora, chamemos-lhe assim, da civilização
desabrochando em terras áridas é, talvez, o único conforto que resta a quem
sabe nada ter a perder. Clementine ficará para construir uma escola, para ser
professora, para educar as crianças de Tombstone. Esperemos que se tenha saído
bem.
P.S.: talvez ainda se recordem de Carroll Baker, a
instrutora que partiu com os índios no épico Cheyenne Autumn (1964). Eis o destino da civilização tão bem desenhado pela cultura popular.
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