sábado, 5 de abril de 2014

GROTO SATO


A confiar nas estatísticas, Raquel Nobre Guerra (n. 1979) faz parte da “geração mais bem preparada” do país. Quer isto dizer que, nascida em liberdade, tanto quanto de liberdade podemos supor na conservadora vida portuguesa, beneficiou das décadas prósperas que ergueram Portugal ao nível dos países mais apetecíveis do mundo. Não estou a ser irónico. É uma realidade insofismável, se nos compararmos com o mundo para lá da Europa. Mas esta geração é também a que vai aprendendo a lidar com uma “preparação” sem resposta no mundo do trabalho, uma geração perdida algures entre o advento das novas tecnologias e o desaparecimento de um tecido social concreto, orgânico, pele na pele. É a geração das redes sociais, de uma existência virtualizada que o realizador David Cronenberg tão bem caricaturou em eXistenZ (1999), da fractura abrupta com uma realidade agora julgada de obsoleta, arcaica, ultrapassada, embora convivendo com nichos de resistência onde andar descalço sobre a terra pode ser um acto de insubordinação. No future, o slogan punk que os Sex Pistols celebrizaram, faz de novo sentido, agora que julgamos mortos todos os profetas e da esperança resta apenas vaga sombra.

Não sendo determinante para a leitura da sua poesia, embora ajude a enquadrá-la, licenciou-se a poeta em Filosofia pela UCP e seguiu estudos para mestre em Estética e Filosofia da Arte. Matérias inúteis, portanto, neste novo mundo pós-humano. Talvez seja este o primeiro sinal de uma filiação testamentária que a própria teimosia no poema reforça, dar testemunho da ruína, da morte, do declínio no seio emergente da novidade. A matriz filosófica nota-se, assim como o ambiente católico do berço académico. Nota-se enquanto obstáculo, ou seja, há na poesia de Raquel Nobre Guerra uma atitude de confrontação com as suas raízes. Groto Sato (Mariposa Azual, 1ª edição 2012, 2ª edição Outubro de 2013) - Prémio Primeira Obra do PEN Clube Português em 2013 - distribui por cinco secções (a última com um único poema longo, decalcado de Álvaro de Campos) versos onde ficam patentes os domínios do confronto que opõem o velho ao novo. O próprio título do livro assim o indica. No posfácio de João Barrento à segunda edição esclarece-se a estranheza do título:

«É um livro esfíngico, e o leitor tem de ter a intuição e o saber de Édipo. A começar pelo título: Groto Sato. Este título será para muitos leitores um engulho, um engasgue, um sapo que custa a engolir. Ou afasta, ou instiga à descoberta (aconselha-se a última). Levei tempo a chegar lá, não tanto ao sato, mais ao groto, e sobretudo à ligação entre as duas palavras. O que primeiro ocorre é talvez o japonês: Sato é nome dessa língua, com o significado de «Iluminado» (tem a mesma raiz do Satori do Zen, a iluminação). Mas é também uma forma verbal latina, com o sentido de cheio, saciado, farto (disto tudo que nos cerca?). E groto? A gruta mágica da informação, a Net, não ajuda muito. «Groto» é nome de pizzarias em Lamego e em Itália! Mas também forma antiga de «gruta», que nos serve melhor. A polissemia vence, podemos ler esse estranho título que se nos enrola na boca como «A gruta iluminafa», ou também «O buraco de quem está farto», ou ainda, como me saiu espontaneamente ao «traduzir» o título, «De saco cheio»!» (p. 109)

A citação é elucidativa de um trabalho linguístico que os poemas repetem, absorvendo elementos clássicos numa linguagem onde o vernáculo tem igual assento. É dado adquirido entre os poetas portugueses da nova geração o usufruto mais ou menos caótico de múltiplas referências culturais, proveito de uma herança histórica onde latim e grego, árabe e sânscrito, podem fornecer condimentos apelativos para uma torrente expressiva cujos limites são os do caldeirão onde se cozinham feitiços verbais. Da mesma forma, convivem nestes poemas epígrafes provenientes da cultura popular com citações de autores consagrados (preferencialmente maudits). Este caos referencial, multicultural, repleto de envios e de evocações, não transforma esta poesia, porém, naquilo que usualmente nos é sugerido como “poesia culta”. Na verdade, o emaranhado confunde-se com a própria vida de quem, lá está, calhou ter por experiência a assimilação da experiência alheia, ao mesmo tempo que traduz de pequenos gestos quotidianos épicas conquistas pessoais. Há nisto muito de poesia, é certo, mas também de biografismo velado, como nesse poema intitulado No Tempo dos Golos onde se subentende a vivência de uma Lisboa nocturna em tempos de, digamos, repouso académico.

Sucede que a única referência que em todas as páginas sombreia e que em todas as esquinas do poema ressoa, não vem explicitada. Nietzsche, o filósofo que para matar Deus se matou a si próprio, escreveu este aforismo intitulado Sentir a arte de maneira diferente: «Desde que se vive como eremita insociável, devorador e devorado, com fecundos e profundos pensamentos e somente com eles, ou não esperamos já seja o que for da arte, ou esperamos uma coisa muito diferente do que antes – por outras palavras, mudamos o gosto. Pois outrora queríamos, através da arte, mergulhar, um momento, no elemento em que hoje vivemos permanentemente; ela permitia, outrora, sonhar o encontro com uma coisa que agora possuímos verdadeiramente. Sim, despojarmo-nos momentaneamente do que temos agora e sonharmo-nos pobres sob os traços de uma criança, de um mendigo ou de um louco – eis o que pode agora encantar-nos ocasionalmente» (os sublinhados são meus). À aurora nietzschiana corresponde, desta forma, um despojamento e uma ilusão propiciadores de ocasional encanto. Do mesmo modo, os poemas de Groto Sato implicam esse despojamento e essa ilusão que provocam espanto no eremita insociável e, por isso, (nos) encantam.

Há nestes versos uma arte de enfeitiçar que transcende a raiva por eles exibida e o (aparente) niilismo que sublinham. A sintaxe informal de poemas ora epigramáticos, ora de maior fôlego, imprime à leitura ritmos diversos onde o sentimento de vazio abismal e um contexto político decadente são como que exorcizados no ritual satânico da poesia. Baudelaire serve de farol, mas já não como serviu, por exemplo, a Manuel de Freitas (n. 1972) e correspondentes afectivos. Elipses súbitas desviam sentidos, confundem a leitura, abrem alas para o termo estranho num certo barroquismo imagético que tem sob si um desejo de subverter formas e fórmulas rígidas, um sentimento heterodoxo da vida e, por consequência, da poesia que penetra as zonas obscuras da mente com uma enorme vontade de trazer à superfície sentimentos fechados nos lugares recônditos do corpo. Despojamento momentâneo, como queria Nietzsche, a lembrar, por vezes, poetas como Sharon Olds ou Karen Finley, sobretudo na dimensão cénica que coloca Eros a dormir na mesma cama com Thanatos. Um poema para resumo, um poema

SEM TÍTULO

resistimos a todas as noites não à nossa
tudo indica que se insinua levita até
uma primavera vulpe a que se somam
detalhes médicos gongóricos e um tanto

da metafísica para desatar esta malha em rodilha
uma oração disposta a todas as misérias
um golo certo para abrandamento cardíaco
mas continuamos gente, singular detalhe

paramos arrefecemos

neste mistério participado, entrelaço de que seguramos
firme a ponta para que nela recaia a substância
de efeitos mágicos

morremos, nós que morremos tão apenas
na hora conciliadora de todas as agulhas
de bordalo indiferente ao dedilhado

e desenrolamo-nos todos no chão

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