A confiar nas estatísticas, Raquel Nobre Guerra (n. 1979)
faz parte da “geração mais bem preparada” do país. Quer isto dizer que, nascida
em liberdade, tanto quanto de liberdade podemos supor na conservadora vida
portuguesa, beneficiou das décadas prósperas que ergueram Portugal ao nível dos
países mais apetecíveis do mundo. Não estou a ser irónico. É uma realidade
insofismável, se nos compararmos com o mundo para lá da Europa. Mas esta
geração é também a que vai aprendendo a lidar com uma “preparação” sem resposta
no mundo do trabalho, uma geração perdida algures entre o advento das novas
tecnologias e o desaparecimento de um tecido social concreto, orgânico, pele na pele. É
a geração das redes sociais, de uma existência virtualizada que o realizador David Cronenberg tão bem caricaturou em eXistenZ (1999), da fractura abrupta
com uma realidade agora julgada de obsoleta, arcaica, ultrapassada, embora
convivendo com nichos de resistência onde andar descalço sobre a terra pode ser um acto de insubordinação. No future, o slogan punk que os Sex Pistols celebrizaram, faz de novo
sentido, agora que julgamos mortos todos os profetas e da esperança resta apenas
vaga sombra.
Não sendo determinante para a leitura da sua poesia,
embora ajude a enquadrá-la, licenciou-se a poeta em Filosofia pela UCP e seguiu
estudos para mestre em Estética e Filosofia da Arte. Matérias inúteis,
portanto, neste novo mundo pós-humano. Talvez seja este o primeiro sinal de uma
filiação testamentária que a própria teimosia no poema reforça, dar testemunho da ruína, da morte, do declínio no seio emergente da novidade. A matriz filosófica nota-se, assim como o ambiente católico do berço
académico. Nota-se enquanto obstáculo, ou seja, há na poesia de Raquel Nobre
Guerra uma atitude de confrontação com as suas raízes. Groto Sato (Mariposa
Azual, 1ª edição 2012, 2ª edição Outubro de 2013) - Prémio Primeira Obra do PEN
Clube Português em 2013 - distribui por cinco secções (a última com um
único poema longo, decalcado de Álvaro de Campos) versos onde ficam patentes os domínios do confronto que
opõem o velho ao novo. O próprio título do livro assim o indica. No posfácio de
João Barrento à segunda edição esclarece-se a estranheza do título:
«É um livro esfíngico, e o leitor tem de ter a intuição e
o saber de Édipo. A começar pelo título: Groto Sato. Este título será para
muitos leitores um engulho, um engasgue, um sapo que custa a engolir. Ou afasta,
ou instiga à descoberta (aconselha-se a última). Levei tempo a chegar lá, não
tanto ao sato, mais ao groto, e sobretudo à ligação entre as duas palavras. O
que primeiro ocorre é talvez o japonês: Sato é nome dessa língua, com o
significado de «Iluminado» (tem a mesma raiz do Satori do Zen, a iluminação).
Mas é também uma forma verbal latina, com o sentido de cheio, saciado, farto
(disto tudo que nos cerca?). E groto? A gruta mágica da informação, a Net, não
ajuda muito. «Groto» é nome de pizzarias em Lamego e em Itália! Mas também
forma antiga de «gruta», que nos serve melhor. A polissemia vence, podemos ler
esse estranho título que se nos enrola na boca como «A gruta iluminafa», ou
também «O buraco de quem está farto», ou ainda, como me saiu espontaneamente ao
«traduzir» o título, «De saco cheio»!» (p. 109)
A citação é elucidativa de um trabalho linguístico que os
poemas repetem, absorvendo elementos clássicos numa linguagem onde o
vernáculo tem igual assento. É dado adquirido entre os poetas portugueses da
nova geração o usufruto mais ou menos caótico de múltiplas referências culturais,
proveito de uma herança histórica onde latim e grego, árabe e sânscrito, podem
fornecer condimentos apelativos para uma torrente expressiva cujos limites são os do
caldeirão onde se cozinham feitiços verbais. Da mesma forma, convivem nestes
poemas epígrafes provenientes da cultura popular com citações de autores
consagrados (preferencialmente maudits). Este caos referencial, multicultural,
repleto de envios e de evocações, não transforma esta poesia, porém, naquilo
que usualmente nos é sugerido como “poesia culta”. Na verdade, o emaranhado confunde-se com a própria vida de quem, lá está, calhou ter por experiência
a assimilação da experiência alheia, ao mesmo tempo que traduz de pequenos
gestos quotidianos épicas conquistas pessoais. Há nisto muito de poesia, é
certo, mas também de biografismo velado, como nesse poema intitulado No Tempo
dos Golos onde se subentende a vivência de uma Lisboa nocturna em tempos de,
digamos, repouso académico.
Sucede que a única referência que em todas as páginas
sombreia e que em todas as esquinas do poema ressoa, não vem explicitada.
Nietzsche, o filósofo que para matar Deus se matou a si próprio, escreveu este
aforismo intitulado Sentir a arte de maneira diferente: «Desde que se vive como
eremita insociável, devorador e devorado, com fecundos e profundos pensamentos
e somente com eles, ou não esperamos já seja o que for da arte, ou esperamos
uma coisa muito diferente do que antes – por outras palavras, mudamos o gosto.
Pois outrora queríamos, através da arte, mergulhar, um momento, no elemento em
que hoje vivemos permanentemente; ela permitia, outrora, sonhar o encontro com
uma coisa que agora possuímos verdadeiramente. Sim, despojarmo-nos
momentaneamente do que temos agora e sonharmo-nos pobres sob os traços de uma
criança, de um mendigo ou de um louco – eis o que pode agora encantar-nos ocasionalmente» (os sublinhados são meus).
À aurora nietzschiana corresponde, desta forma, um despojamento e uma ilusão
propiciadores de ocasional encanto. Do mesmo modo, os poemas de Groto Sato
implicam esse despojamento e essa ilusão que provocam espanto no eremita insociável e, por isso, (nos) encantam.
Há nestes versos uma arte de enfeitiçar que transcende a
raiva por eles exibida e o (aparente) niilismo que sublinham. A sintaxe
informal de poemas ora epigramáticos, ora de maior fôlego, imprime à leitura
ritmos diversos onde o sentimento de vazio abismal e um contexto político decadente
são como que exorcizados no ritual satânico da poesia. Baudelaire serve de farol, mas já não como serviu, por exemplo, a Manuel de Freitas (n. 1972) e correspondentes afectivos. Elipses súbitas desviam
sentidos, confundem a leitura, abrem alas para o termo estranho num certo
barroquismo imagético que tem sob si um desejo de subverter formas e fórmulas rígidas,
um sentimento heterodoxo da vida e, por consequência, da poesia que penetra as
zonas obscuras da mente com uma enorme vontade de trazer à superfície
sentimentos fechados nos lugares recônditos do corpo. Despojamento momentâneo,
como queria Nietzsche, a lembrar, por vezes, poetas como Sharon Olds ou Karen
Finley, sobretudo na dimensão cénica que coloca Eros a dormir na mesma cama com
Thanatos. Um poema para resumo, um poema
SEM TÍTULO
resistimos a todas as noites não à nossa
tudo indica que se insinua levita até
uma primavera vulpe a que se somam
detalhes médicos gongóricos e um tanto
da metafísica para desatar esta malha em rodilha
uma oração disposta a todas as misérias
um golo certo para abrandamento cardíaco
mas continuamos gente, singular detalhe
paramos arrefecemos
neste mistério participado, entrelaço de que seguramos
firme a ponta para que nela recaia a substância
de efeitos mágicos
morremos, nós que morremos tão apenas
na hora conciliadora de todas as agulhas
de bordalo indiferente ao dedilhado
e desenrolamo-nos todos no chão
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