Só por desconhecimento ou pretensiosismo poderemos
considerar insuficiente o interesse português pela poesia produzida no Brasil
(ou por poetas brasileiros). Organizada por Jorge Henrique Bastos, a antologia
Poesia Brasileira do Século XX – dos modernistas à actualidade (Antígona,
Fevereiro de 2002) proporcionou-nos um vasto panorama da produção poética
brasileira, o qual pudemos posteriormente alargar com a edição de Poesia
Brasileira do Início do Terceiro Milénio (Exodus, 2008), recolha focada em
meios de divulgação alternativos ao tradicional meio literário. Editoras como a
extinta Quasi ou a ainda activa Cotovia publicaram vários volumes de poesia
brasileira, tendo esta última até investido numa colecção intitulada "Curso
breve de Literatura Brasileira". Mais recentemente, são de referir variadíssimas
edições da Quetzal e Tinta-da-China, em terrenos tão diversos como os da
crónica, da poesia, do humor, da ficção, do ensaio, e a colecção de clássicos
surgidos entre nós de uma parceria entre a Academia Brasileira de Letras e a
editora Glaciar. Paralelamente, pequenos projectos editoriais como a Douda
Correria ou a Mariposa Azual vêm denotando regular interesse pelas mais actuais
vozes poéticas brasileiras. Sendo o português língua oficial no Brasil, não espanta
tamanho interesse. Resta saber se ao mesmo correspondem os leitores e quanto de
recíproco possa ser o interesse brasileiro pela produção literária portuguesa,
para que, feitas as contas, seja correcto mencionar uma relação intercultural
entre os dois países. No que respeita à poesia, podemos desde já afirmar com
segurança haver pelo menos uma comunhão de interesses gerada pela proximidade
que as redes sociais incutem e facilitada pela prática de uma língua comum.
Temendo que de tal cenário surja apenas uma viciosa perspectiva geracional,
tentemos olhar um pouco além do óbvio recorrendo a quatro poetas, dois
publicados por cá, outros por lá, nascidos em épocas díspares e, como seria previsível, praticando
poéticas diversas.
Armando Freitas Filho (n. 1940) nasceu no Rio de Janeiro
e começou a publicar na década de 1960, apesar de ter mantido uma forte
afinidade com a chamada geração de 70. De resto, assinou com Heloisa Buarque de
Holanda e Marcos Augusto Gonçalves o ensaio Anos 70 — Literatura (1979). Foi íntimo
de Ana Cristina Cesar (n. 1952 – m. 1983), tendo ficado como curador da sua
obra após o suicídio da poeta. Fio Terra (Nova Fronteira, 2000), Prémio
Alphonsus de Guimaraens, foi o último livro que publicou antes da integral
Máquina de escrever —poesia reunida e revista (2003). Dividido em duas partes,
fio terra e no ar, esta é também uma poesia que se reparte entre as coisas da
terra, quotidianas, materiais, e as do ar, abstractas, mentais. Ainda que
incorpore o dia-a-dia nos seus versos, na primeira parte do livro em registo
quase diarístico, Armando Freitas Filho escapa aos tradicionais chavões da
chamada poesia do quotidiano cingindo-se à organização dos espaços e dos
ambientes, em suma da paisagem que envolve o sujeito poético, com fragmentos que
nos chegam como ressonâncias da ligação estabelecida entre o corpo e a escrita
enquanto acto. É precisamente o acto de escrever, a persistência no gesto, a
dimensão que mais sobressai no que desta poesia possa haver de diarístico. Daí
que na primeira parte do livro, a que lhe oferece o título, os dias pareçam
suceder invariáveis, sem tumultos que perturbem a adivinhada direcção única do
fim: «A mão é que pensa, pesa e apanha / o que a cabeça imagina» (p. 20). Os
poemas da segunda parte aprofundam, isoladamente, os temas introduzidos na
primeira, temas esses despontados pela interrogação do escrevente face à sua
própria actividade: o fluir do tempo na paisagem urbana, o ruído da cidade
sufocando o lado telúrico da vida, a conflituosa relação que no sujeito se
exerce entre a raiz selvagem e a aculturação doméstica. No fundo, estamos
perante uma espécie de declaração de princípio: a poesia resulta mais numa
ligação da vida à morte do que numa superação de eventuais oposições entre
ambos os tempos, há uma continuidade que o poema exprime, uma fluidez
ininterrupta entre o vivido e o exprimido, mas não resolve, porque a palavra escrita
é sempre insuficiente face ao que o corpo acarreta. Um poema:
DEPOSIÇÃO
A vida vem com a morte implícita.
Trações iguais da mesma corrente
com elos idênticos que só mudam
de sentido quando algum quebra.
A ferida de entrada aberta desde
o princípio, dura um minuto ou
muitos. Nada se explica nunca.
Tudo é parte da mesma pedra
amordaçada por sua camisa-de-força
natural, e que cai — cada vez mais —
no poço até ao fundo, que não é falso
mas o que se sente, permanente
é a queda, não o primeiro chão
da cama ou o do próprio corpo
ou depois o último, final, de terra.
Prémio Portugal Telecom de literatura brasileira, Paulo
Henriques Britto (n. 1951) também merecia outra divulgação por terras
lusas. Poeta tardio, publicou o primeiro livro de poemas apenas em 1982.
Tornou-se um relevante tradutor de autores anglófonos depois de alguns anos a
viver nos EUA. Tarde (Companhia das Letras, Junho de 2007) é uma recolha reveladora
das principais obsessões deste poeta, nomeadamente a propensão para
reconfigurar formas tradicionais e jogar de um modo extremamente inteligente
com o potencial polissémico de certas palavras. Tarde tanto pode ser um período
do dia como aquilo que já teve o seu tempo, que chega fora de prazo. A poesia
de Paulo Henriques Britto começa por assumir de um modo lúdico estas
indefinições, desconstruindo os espartilhos das formas fixas sem os subverter.
Há nesta poesia um rigor métrico que lhe confere uma musicalidade muito
própria, sendo precisamente o labor rítmico uma das suas mais notáveis particularidades.
Assim é porque o mesmo rigor se faz acompanhar de uma reflexão acerca dos
limites da linguagem e do conhecimento, não sendo por isso de estranhar, antes
pelo contrário, referências a Pessoa e Wittgenstein, autores onde o modo como o
pensamento se relaciona com a linguagem e esta com a realidade foi, desde a
primeira hora, preocupação fundamental. Porventura com uma cintilação mais
lúdica, Paulo Henriques Britto chama para o interior dos seus poemas não apenas
estas questões de pendor filosófico como os organiza quase ao modo de um
tratado. Perpassa, assim, um certo desdém pela actualidade e pelo comezinho,
ainda que o tom irónico de alguns poemas se encarregue, como dizia O’Neill, de
desimportantizar todo e qualquer discurso. O seu trabalho concentra-se na linguagem, nos aspectos formais e informais da linguagem, embora tal opção não exclua da versificação o sentimento e as emoções, apenas as tornando discretas, sujeitando-as a uma vigilância que resfria o discurso. Da sequência intitulada Crepuscular, partilho aqui a segunda estância:
2.
Chegamos tarde, é claro. Como todos.
Chegamos tarde, e nosso tempo é pouco,
o tempo exato de dizer: é tarde.
Todas as sílabas imagináveis
soaram. Nada ficou por cantar,
nem mesmo o não-ter-mais-o-que-cantar,
o não-poder-cantar, já tão cantado
que se estiolou no infinito banal
de espelhos frente a frente a refletir-se,
restando da palavra só o resumo
da pálida intenção , indisfarçada,
de não dizer, dizendo, coisa alguma.
Para quem acompanhe o que por cá se vai publicando, o
nome de Angélica Freitas (n. 1973) não será inteiramente desconhecido. Já lá
irão uns 10 anos que a revista aguasfurtadas, n.º 10, no-la deu a conhecer com
uma brevíssima antologia introduzida por Ricardo Domeneck (n. 1977). Ambos são co-editores
da revista de poesia Modo de Usar & Co., a par de Fabiano Calixto, de quem
a Tinta-da-China publicou Equatorial (2014), e de Marília Garcia (n. 1979), de quem
a Mariposa Azual publicou Um Teste de Resistores (2015). Rilke Shake surgiu
originalmente em São Paulo, pela Cosac Naify, em 2007. A edição portuguesa
coube à Douda Correira, em Agosto de 2015. Por desconhecer a edição original,
não poderei aferir da eventual existência de alterações entre edições separadas
por oito anos. Certo é que o próprio título da colectânea não deixa margem para
grandes dúvidas, estamos no terreno da derrisão poética. Os versos de
Angélica facilmente se deixam contaminar por um olhar humorístico que encontra
no nonsense a sua principal filiação, mesmo quando percorre episódios
quotidianos, se foca em memórias domésticas que se encarrega de baralhar com
sardónica (com)paixão ou incorre naquilo que poderemos considerar abordagem à
condição feminina. De uma geração outra que não a dos poetas precedentes,
Angélica Freitas aproveita as heranças modernista e concretista, assimila do
espólio surrealista uma certa forma de olhar para o mundo e, tal como o título
da colectânea indica, remistura todas essas tradições instaurando uma marca
pessoal que também não é alheia aos domínios da metalinguística. A certo
momento, Gertrude Stein, Djuna Barnes, Josephine Baker, Ezra Pound, Marianne
Moore, entre outros, surgem como que numa divertida narrativa sob a qual se
disfarça uma dramatis personæ difícil de decifrar, mas possível de presumir
enquanto dramatização da existência do exilado. A face lúdica é a mais evidente nestes poemas, a qual não deve distrair-nos de uma noção do poético que tem na atitude descomprometida da autora indícios fortes de um combate ao academismo em prol da total liberdade expressiva do poema:
às vezes nos reveses
penso em voltar para a england
dos deuses
mas até as inglesas sangram
todos os meses
e mandam her royal highness
à puta que a pariu.
digo: aguenta com altivez
segura o abacaxi com as duas mãos
doura tua tez
sob o sol dos trópicos e talvez
aprenderás a ser feliz
como as pombas da praça matriz
que voam alto
sagazes
e nos alvejam
com suas fezes
às vezes nos reveses
Tal como na poesia de Angélica Freitas, também na de Ricardo
Domeneck ecoam os efeitos da diáspora. Poeta militante, Domeneck vive e
trabalha em Berlim há já vários anos. Medir com as próprias mãos a febre
(Mariposa Azual, Outubro de 2015) é o mais extenso dos quatro livros aqui
mencionados, o sexto de uma bibliografia iniciada em 2005 com Carta aos
anfíbios (Rio de Janeiro, Bem-te-Vi). Fazendo uso de multímodas formas de
expressão, é na poesia que Domeneck tem vindo a afirmar-se pela consistência,
perseverança e erudição demonstrados. Nesta colectânea são inúmeras as
referências e evocações, tantas que seria exaustivo enumerá-las. Esse lado
culto e cultural é exibido de uma forma descontraída, em poemas habitados por
lugares e por pessoas concretas, oriundas tanto da cultura clássica como da
cultura popular brasileira. Apesar de tantas vezes recorrer ao artifício histórico
enquanto suporte material de expressão poética, o autor de Medir com as
próprias mãos a febre finta o artificialismo ressituando os factos num processo
que tanto poderemos dizer de encontro e identificação do passado com o presente
como de arrebatamento do retorno que pauta os ritmos da história. Notamos isto,
desde logo, na recorrência a episódios da cultura clássica, nas referências à
antiguidade grega, no recurso a formas medievais de expressão poética como, por
exemplo, a cantiga de amigo, ou a movimentos tais como o trovadorismo, nas invocações
de jograis obscuros, assim como na prática da rima através de uma complexa
disposição lexical e da frequente prosódia assente em anadiploses e figuras
similares. Apesar de a espaços tender a resvalar para um barroquismo
que desafia a leitura, evita os deslizes com inflexões irónicas e lúdicos jogos de
palavras onde se evidencia um erotismo homoerótico que tem por musa um Moço:
«Eu o recebo / como o projeto / urbanístico / de Brasília recebe / o céu do
cerrado. / Eu plano, ele pilota» (p. 63). A poesia de Ricardo Domeneck
inscreve-se, deste modo, numa tendência de alguns poetas da sua geração, entre
os quais portugueses como Daniel Jonas ou Margarida Vale de Gato, para os quais
o exercício da poesia é indissociável de um trabalho de conservação da língua
que mais do que descontruir a tradição, a recupera e actualiza - preenchendo-a
com as ironias do presente onde ela foi esvaziada de solenidade. Antes de
fechar com um poema que talvez possa ilustrar o que foi escrito, referir apenas,
pela pungente acuidade do discurso, o poema intitulado Carta ao Pai, um dos mais
admiráveis momentos que a “literatura homoafectiva”, à falta de melhor
designação, conheceu em língua portuguesa. Outro momento alto deste livro:
SÍTIO ARQUEOEROLÓGICO
I don’t
like that stranger sneezing over our love
Frank O’Hara
se nos enterrassem juntos e passássemos séculos e milênios
fazendo concha primeiro com a pele então músculos ossos
um do outro e mais tarde um grupo tedioso de arqueólogos
nos encontrasse e perturbasse os nossos sonhos de poeira
enamorada quem nos dera querido sejam meros amadores
e confundam nossos ossos na hora das análises e tua tíbia
passasse por minha a minha ulna passaria por tua oxalá
nem encontrem as nossas bigornas martelos e estribos
porque de ouvir bobeiras já nos cansamos ao extremo
fofocas boatos sobre nós bastam os de nosso tempo
mas ao menos percebam ao datar o nosso cálcio
que essa história é mais velha que nossos corpos
e respeitem nossos restos e os de aqueles todos
a quem não foi dada a glória da convivência
seguida pela sorte tamanha da comoriência
e que não ousem engavetar-nos separados
mas nos devolvam por fim ao silêncio
que só nós quebramos em cochichos
que soletram soerguem só o nosso
o nosso próprio tão-só pó
2 comentários:
Epa, publicar aos 32 anos não é ser um poeta tardio :)
Tenho a cabeça cheia de Rimbaud. Enfim, em comparação com os restantes. E é o próprio poeta quem de algum modo o afirma, vide Youtube.
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