Sob o pseudónimo literário de m. parissy, o jornalista
Mário Galego (n. 1969) vem publicando desde a estreia em 1989, com um volume em
edição de autor intitulado corpo indómito, vários livros de poesia em editoras
de distribuição restrita. Oriundo da Nazaré, foi aí que participou na
dinamização de projectos editoriais como a extinta non nova sed nove ou a
activa Volta d’Mar. Além dos opúsculos editados através desses projectos, conhecemos-lhe
livros aparecidos na Universitária Editora - dublin e tu (1999) -, nas Edições
Mortas – morte com dedos em ferida (2000) -, na Black Son Editores - mãos de
arquipélago (2003) -, na Canto Escuro – vertigem (2007) -, e na Tea for One –
dança (2015). O seu mais recente livro, intitulado Ferido (Setembro de 2016), é
o quarto título que faz sair na Volta d’Mar. Tal contabilidade é relevante para
que se perceba a inscrição desta poesia num circuito marginal ao da produção
poética merecedora, aqui e acolá, de atenções críticas facilitadoras de uma
visibilidade menos reduzida.
Do que conhecemos desta poesia, importa salientar, desde
logo, uma forte ligação ao lugar de origem do seu autor. Os livros de m.
parissy são profícuos na reprodução de uma paisagem costeira onde o mar, a
praia, as falésias, marcam presença recorrente. Ferido não é excepção. Logo nos
primeiros versos encontramos “mares desconhecidos” e “cheiro a peixe”, tornando-se
ainda mais evidentes as demarcações geográficas com a referência a locais
concretos tais como a pensão Leonardo ou a uma toponímia deveras familiar: «rua
França Borges, rua / da Saudade, rua das Flores» (p. 10). Estas referências,
que em livros anteriores poderiam surgir mais veladas, assumem num livro com as
características de Ferido um papel determinante. São o espaço de ocorrências
que os versos recuperam e percorrem como quem narra uma história. Ainda que a
dimensão metafórica não tenha sido de todo abandonada, ela encontra-se aqui em equilíbrio
com a dimensão narrativa.
Não é por acaso que o livro começa com a conjugação do
verbo haver na primeira pessoa do singular do pretérito imperfeito do
indicativo, anunciando a existência de algo ao mesmo tempo que nos envia para
um tempo passado. Onde se lê havia podíamos ler era uma vez, como
tradicionalmente sucede na maioria das histórias. E é a partir de aqui, e desta
forma, que somos introduzidos num universo íntimo onde a memória ocupa uma
função primordial. De estrofe em estrofe, como quem salta de capítulo em
capítulo numa sequência cujos versos se interligam naturalmente, ficaremos a
saber que esse tempo é o da infância, clara e objectivamente declarado numa das
estâncias finais do poema. É a memória dos sete anos, idade de uma etapa escolar
iniciática, que aqui vem à superfície, não por dela se conservar a banal imagem
do paraíso perdido ou o tão vulgarizado sentimento de uma nostalgia romântica, mas
por nela se entreverem fracturas que o poema procura resolver num gesto que é
em si mesmo catártico e, por isso, rejuvenescedor: «Foi preciso / inscrever o
passado, para que dali / voltasse a nascer» (p. 30).
A par desta dimensão narrativa do poema, m. parissy
insiste numa das suas características discursivas mais reconhecíveis, isto é, o
uso sem peias de uma linguagem metafórica como reforço imagético de sensações e
de percepções dos momentos em que o sujeito poético se coloca: «Um nevoeiro
cobria o / peito» (p. 10), «Um sol / por baixo da língua» (p. 11), «Acordava
com o silêncio que doía» (p. 22)… Agradável se torna quando associamos estas
leituras da realidade à criança de sete anos aludida no poema, por fazerem
ainda mais sentido no contexto específico em que a criança se encontra: fechada
num quarto, isolada do exterior, adivinhamos que por doença, ligada ao mundo
apenas através de uma janela de madeira velha que nunca se abre. Seis meses de
reclusão aos sete anos de idade são, pois, a ferida que o poema procura sarar. Dessa
experiência de reclusão, surge «O medo que a liberdade / não existisse» (p.
37). Ora, que medo maior pode um poeta sentir?
Tudo era esterilizado: pratos,
toalhas, roupa. Nada podia conter
sinais do exterior. Nem sequer as
revistas Natura pousadas na mesa-
de-cabeceira. Nem a comida, nem
as duas mãos que a transportava.
A esterilização do espaço interior para o qual vamos
sendo deslocados ao longo do livro contrasta com a liberdade do espaço
exterior, onde para lá da sombra se vêem rapazes a brincar, a jogar a bola, e o
mundo decorre com uma normalidade insultuosa para quem se encontra na anormal
circunstância de não poder sequer ser tocado pelas mãos impuras que lhe trazem
comida. Entre os planos da doença e da saúde estabelecem-se elos de inúmeras
leituras possíveis, acerca dos quais poderíamos formular as mais variadas
conjecturas. A verdade é que não nos parece legítimo enveredar por tais
caminhos quando a reminiscência transfigurada num livro como Ferido é já de si
tão forte e intensa: uma criança de sete anos, isolada do mundo durante seis
meses, fechada num quarto, limitada a observar o mundo exterior por uma janela
fechada como se fosse um criminoso sem consciência do crime que cometeu.
Transportar a intensidade de uma experiência destas para o poema, sem a tornar despudoradamente
emocional e sentimental, é revelador de um engenho sem o qual nenhuma boa
poesia subsiste.
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