Quando, em 1993, surgiu nas salas de cinema Short Cuts, sem
dúvida um dos melhores filmes assinados por Robert Altman, houve quem tivesse comparado
o filme a um edifício despido de paredes. O espectador assistia aos diferentes sketches
como se estivesse a observar o que ao mesmo tempo se passava nos diversos
andares de um mesmo prédio. Lembrei-me desta dimensão criativa da montagem ao
ler Onde Todos Observam (Elsinore, Julho de 2016), que não por acaso começa com
um texto onde o fotógrafo Robert Mapplethorpe é representado a fazer colagens
com partes de corpos masculinos recortados de uma revista. A colagem é um
exercício de montagem que oferece à realidade uma nova conjugação dos seus
elementos, ao passo que a fotografia, exceptuando experiências
muito específicas, representa a realidade a partir de uma perspectiva.
Aprendemos a olhar a totalidade de um objecto decompondo-o e voltando a unificá-la
sob múltiplos pontos de observação. É precisamente isso que Megan Bradbury se
propõe fazer com Nova Iorque, num livro de estreia onde nem sempre a ambição
formal resulta no prazer da leitura.
Em capítulos breves, por vezes
brevíssimos, e isolados como ilhas, aquela que é porventura a mais retratada
das cidades do mundo surge em frases curtas e concretas, amiúde em espaços ecfrásicos,
a partir de anotações biográficas acerca de alguns dos seus mais emblemáticos
habitantes. Especializada em escrita criativa, Megan Bradbury sabe os riscos
que corre quando se refere ao seu livro de estreia chamando-lhe romance. Num tempo
em que um post pode ser confundido com crítica literária, a qualquer objecto
literário minimamente ficcionado se pode dar o nome de romance. Mas só com
muito boa vontade e bastante espírito criativo poderemos aceitar que Onde Todos
Observam seja ficção, ainda que não nos custe arrumá-lo entre os clássicos
do género. A discussão seria irrelevante não nos obrigasse a leitura a questionar
a declaração da autora. Podemos partir do princípio que se a autora afirma que
escreveu um romance, então nós lemos um mau romance. Mas não se tratando de um
romance, teremos lido um livro agradável de não-ficção.
É que de um romance espera-se algo
mais do que uma colagem de fragmentos, mais ou menos interessantes e
reveladores, acerca de um tema comum. Mesmo que não exijamos um nexo narrativo,
esperamos um fio condutor. E ele não existe aqui. Se existe, é de modo tão
ténue que não damos por ele. Mais parece estarmos perante uma manta de
retalhos com o propósito final de nos oferecer, em relevo, o rosto de uma
cidade. Os retalhos provêm de fontes diversas, mormente fotografias,
documentários, filmes, livros, relacionadas com figuras relevantes e
reveladoras do espírito nova-iorquino. O engenheiro Robert Moses (1888-1981),
com o seu empreendedorismo inabalável, é uma das figuras em foco, ou não
tivesse sido ele um dos principais responsáveis pelo planeamento urbanístico da
mais influente cidade do mundo. Também no centro das atenções está o fotógrafo
Robert Mapplethorpe (1946-1989) e quem com ele conviveu num meio artístico dado
à estilização do corpo. Walt Whitman (1819-1892), invariavelmente acompanhado
do seu biógrafo Richard Bucke (1837-1902), é outra das personalidades no centro
das atenções. Mas aparecem
ainda o escritor Edmund White (1940), a rocker Patti Smith (1946), ou a
canadiana Jane Jacobs (1916-2006), autora do atinente The Death and Life of
Great American Cities (1961).
Toda esta gente surge sem outra ligação
que não seja a de se movimentar num palco geográfico comum, embora seja precisamente a partir dessa
ligação que podemos estabelecer entre os recortes que compõem o livro uma
panorâmica com elementos paisagísticos não necessariamente acolhedores. Aqui
e acolá, certo desencanto, que não afecta o tom geral de espanto e de admiração,
emerge de uma brutal constatação de como o espaço não se transforma com e para
as pessoas, parecendo instaurar-se entre a cidade e os seus habitantes um frio
distanciamento. «As ideias não são como
ilhas, pois não podem ser fixadas num mapa», afirma Whitman. Mas as cidades
podem. E, em certo sentido, Nova Iorque é uma ideia. Uma ideia que pode ser
fixada num mapa. Ou pelo menos é com essa ideia que ficamos depois de a
observarmos desse miradouro Onde Todos Observam.
1 comentário:
Ha...!!!
Comprei há dias por uma libra em segunda mão!
iupi...!
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