terça-feira, 14 de março de 2017

GAMA


III

Que espécie de palavra é esperança
É da cor da cinza
Sabe a feno antigo depois da chuva
Opaca ao tacto como o muro alto e branco
Cheira a traineiras
À corda húmida depois da pesca
O ritmo oscila na clave
O acento entre sílabas que conspiram átonas

Não vejo esperança na sintaxe
Uma apenas interjeição
e       e       a      a
s, p, r, ç, corroem a esperança
Deixam-na sem fundamento ou raiz

O  s  mata a esperança
A acção chegou ao fim sem nunca ter começado
Silêncio regresso sussurro soçobrar
O  p  impede-a de subir e sonhar
Prende-a à porta e à pedra pauper et paucrum
Mas o  r  lembra-lhe os curros com seus  r  de reprimir
Manda-a descer pelo filtro
Que lhe desfibra os raios e retesa os arames

O  n  desliga o nó descobre-lhe a nudez
Corta-a pelo núcleo
Mostra-a caída na neve negada
Nada ninguém nunca noite
Mas é o  ç  que amarra a nau ao fundo
Nem vermelho nem negro nem  c  nem  q
A palavra dobrando-se doce verga sorrindo
Açucarada com açucenas e açafates

Esperança deve escrever-se com  f
Que dá origem ao fogo à fonte à força
Faz-lhe falta o  t  metálico e vibrado
Com a seiva e a consistência de
Talo timbre
Torno tuba e tronco
O  d  aumenta-lhe a razão
Demonstra deduz debate e duvida

Esperança só é eficaz com  v
Onde reside a força e sopra o elemento
Onde a voz venta e vai veloz
Mas para que se erga no ar e voe
O  z  introduz-lhe o zip
Dá-lhe a fluidez do mercúrio
E a forma compacta da rosa
Duas vogais apenas para a esperança restaurada:  a,  i

Em Fatidiviz ainda ecoa um  r
Mas este agora é lógico
É o  r  da estrutura grupo e parte
Que liga para construir 
Que regressa para libertar
E assim Fatidiviz é o que vence o Fado qualquer
Grego ou latino opondo-se ao fatídico
É o que tem o Fiat


M. S. Lourenço (n. 1936 - m. 2009), in Arte Combinatória (1971). «Quanto a M. S. Lourenço (Manuel António dos Santos Lourenço, n. 1936), é um autor desconcertante, com momentos de completo acerto, pela intencional alternância, ou fusão, de processos e fontes: epigramas da mais elíptica sintaxe; evocações de certos ambientes históricos ou exóticos reconhecíveis, sumptuosos de imagens e raiados de absurdo, em prosa ou poema de larga respiração; paráfrases e justaposições de textos, com o sabor sugestivo e ao mesmo tempo evasivo de uma erudição deliciada à Ezra Pound» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa). 

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