III
Que espécie de palavra é esperança
É da cor da cinza
Sabe a feno antigo depois da chuva
Opaca ao tacto como o muro alto e branco
Cheira a traineiras
À corda húmida depois da pesca
O ritmo oscila na clave
O acento entre sílabas que conspiram átonas
Não vejo esperança na sintaxe
Uma apenas interjeição
e e a a
s, p, r, ç, corroem a esperança
Deixam-na sem fundamento ou raiz
O s mata a esperança
A acção chegou ao fim sem nunca ter começado
Silêncio regresso sussurro soçobrar
O p impede-a de subir e sonhar
Prende-a à porta e à pedra pauper et paucrum
Mas o r lembra-lhe os curros com seus r de reprimir
Manda-a descer pelo filtro
Que lhe desfibra os raios e retesa os arames
O n desliga o nó descobre-lhe a nudez
Corta-a pelo núcleo
Mostra-a caída na neve negada
Nada ninguém nunca noite
Mas é o ç que amarra a nau ao fundo
Nem vermelho nem negro nem c nem q
A palavra dobrando-se doce verga sorrindo
Açucarada com açucenas e açafates
Esperança deve escrever-se com f
Que dá origem ao fogo à fonte à força
Faz-lhe falta o t metálico e vibrado
Com a seiva e a consistência de
Talo timbre
Torno tuba e tronco
O d aumenta-lhe a razão
Demonstra deduz debate e duvida
Esperança só é eficaz com v
Onde reside a força e sopra o elemento
Onde a voz venta e vai veloz
Mas para que se erga no ar e voe
O z introduz-lhe o zip
Dá-lhe a fluidez do mercúrio
E a forma compacta da rosa
Duas vogais apenas para a esperança restaurada: a, i
Em Fatidiviz ainda ecoa um r
Mas este agora é lógico
É o r da estrutura grupo e parte
Que liga para construir
Que regressa para libertar
E assim Fatidiviz é o que vence o Fado qualquer
Grego ou latino opondo-se ao fatídico
É o que tem o Fiat
M. S. Lourenço (n. 1936 - m. 2009), in Arte Combinatória (1971). «Quanto a M. S. Lourenço (Manuel António dos Santos Lourenço, n. 1936), é um autor desconcertante, com momentos de completo acerto, pela intencional alternância, ou fusão, de processos e fontes: epigramas da mais elíptica sintaxe; evocações de certos ambientes históricos ou exóticos reconhecíveis, sumptuosos de imagens e raiados de absurdo, em prosa ou poema de larga respiração; paráfrases e justaposições de textos, com o sabor sugestivo e ao mesmo tempo evasivo de uma erudição deliciada à Ezra Pound» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa).
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