quinta-feira, 9 de março de 2017

"HANGAR DE DESPERDÍCIOS"

Também eu cultivei em parte o gosto pelos livros lendo o que outros sobre eles escreviam, quer em colectâneas de crítica literária, quer em ensaios ou nas recensões dispersas por jornais, suplementos, revistas. Durante anos, tive inclusivamente a prática de recortar artigos e arquivá-los para memória futura. Alguns textos sobre livros adquirem uma autonomia face ao objecto de análise que valem por si mesmos, outros cativam-nos pela informação que proporcionam, pela prática reflexiva e crítica, pelo exercício do pensamento através de uma disponibilidade para o saber e para o conhecer que vai escasseando nos nossos dias. Recuso a perspectiva nostálgica aliada a um saudosismo incapaz de compreender as novas regras do discurso, mas permaneço fiel à demora, ao tempo e, por consequência, às pausas sem as quais a lucidez do pensamento não vinga. Ou seja, creio que um dos grandes males do nosso tempo, porventura diagnosticado mas sem tratamento aparente, é a brutal aceleração da existência, a qual arrasta sem resistência a capacidade de concentração dos homens e, mais grave, a predisposição para o conflito intelectual, para o debate de ideias, para o espírito crítico. Em suma, à aceleração da existência corresponde a morte prematura do pensamento.

Bombear preconceitos, destilando raivas e ódios de estimação, alardeando uma putativa liberdade de espírito que não passa de exibicionismo pacóvio, não entra nestas contas. O fora-da-lei não se afirma por andar num berreiro constante a dizer que o é, mas sim porque a lei lhe é estranha às convicções e à moral, porque não está de acordo com uma ética pessoal independente das cátedras em vigor, exercendo assim à margem do cânone ou paralelamente a este o seu modo de vida. Tal como, ao que parece, Jesus nunca se afirmou filho de Deus, também o condenado não reconhece o crime de que o acusam. Assim sendo, o que vai sobrando são sobras. Os jornais perdem público a cada dia que passa, desunham-se com sensacionalismos idiotas numa ânsia desesperada de captar atenções mínimas de quem não os lê. Os suplementos foram reduzidos em páginas e caracteres, oferecendo mais espaço às fotografias dos autores do que à leitura dos livros. As revistas resistem por carolice ou subsídio, circulando de mão em mão com borlas que garantem miolo a um nicho cada vez mais restrito de interessados.

Por onde andam os (des)interessados? Voltaram-se para as redes sociais e entretêm-se a partilhar anedotas, circunscrevendo o campo de acção à protecção asséptica da distância. Quando lêem um livro, com sorte respigam uma frase que partilham com o mundo à espera de likes. E ao like se reduz a avaliação crítica, como outrora vingavam as estrelas nos jornais. O futuro será o pó das estantes. Convencidos de que sobre um livro nada há a dizer a não ser citá-lo, acabam também por não pensá-lo. Furtam-se ao pensamento por não terem qualquer interesse na discussão, no debate, no conflito, saturados que andam de tantas emoções em polvorosa nas caixas de comentários do dia-a-dia. Quando me refiro à discussão, ao debate e ao conflito, nem sequer estou a pensar em mesas redondas ou, muito à maneira portuguesa, palcos dois degraus acima do público. Redundam invariavelmente numa berraria insuportável com anedotário especificamente preparado para não adormecer as massas. Refiro-me à discussão silenciosa, ao debate tranquilo, ao conflito desinteressado que a leitura dos outros proporciona. Se me dá gozo ler o que outros escrevem sobre um livro é precisamente pelo prazer que retiro do diálogo que estabeleço com essas leituras, às quais oporei ou não a minha conforme me seja ou não proveitoso fazê-lo. É impossível ler quem escreva aos berros.

Tomemos de exemplo duas colectâneas de textos provenientes de revistas e jornais, curiosamente de dois autores contemporâneos há muito desaparecidos da imprensa periódica. Por que será? Paulo da Costa Domingos (n. 1953) reuniu em A Morte dos Outros (Companhia das Ilhas, Novembro de 2014) um conjunto de textos anteriormente publicados na revista LER. Datados do início da década de 1990, liga-os a índole apócrifa como pretexto para um diálogo com os mestres. Uma carta de Vincent Van Gogh a Théo, um texto a partir de dois fotogramas apócrifos de Andrei Tarkovskii, um evangelho segundo Jorge Luis Borges, uma carta de Mikhail Bakunine a Richard Wagner, aproximações às obras de Carlos de Oliveira e Vitorino Nemésio, não sendo textos de crítica literária são exercícios onde a dimensão crítica surge implícita no gesto de apropriação literário levado a cabo a partir de singulares leituras dos autores citados. As versões de oito poemas assinados por Arsenii Tarkovskii acentuam esse gesto, na medida em que ao se incluírem neste conjunto assumem uma noção da tradução enquanto falsificação do original. Respeitam, deste modo, o elo apócrifo que une todos os textos.

A pergunta é: seriam hoje possíveis na revista em causa? Encontramos uma resposta possível num parágrafo roubado a Fátima Maldonado (n. 1941), a qual iniciou do modo que se verá um texto dedicado ao livro O Pé Esquerdo (1999), de João Miguel Fernandes Jorge:

Cada vez é mais difícil escrever sobre o que outros escrevem, cada dia é mais complicado apartar do monturo alguma coisa que possa ter ainda préstimo. A literatura é agora, como ciclicamente aconteceu noutras épocas, hangar de desperdícios onde se acumulam dejectos, miudezas, ossos podres. Atrás da cerca espreitam trapeiros na mira de seleccionarem o mais facilmente transaccionável. Tudo o que a maioria aplaude ou rejeita conforme o condicionamento. Coisas fáceis que poderão apreender sem investimento, o que traduz nenhuma suspeita ou interrogação sobre a ordem do mundo. Mensagens sempre mais pobres diluindo-se em fórmulas sempre mais básicas. Cultura de semi-analfabetos para semi-analfabetos batendo nas costas em sinistro jogo de espelhos. A pouco e pouco a rasura irá completar-se na ausência de escolhos, tesoura gigante aparando as desordens do medianíssimo contorno. Evita-se assim o perigo de rupturas ou derramamentos e poder-se.á depositar, sem temor, a desminada cultura nas mãos de audiências quase já sem cérebro. Nada disto tem qualquer importância, é apenas uma das leis que varrem periodicamente campos de tristes contendas. Depois há-de voltar a calma, devagarinho a poeira descerá. Recomeçando tudo mais tarde com novos actores que apenas se distinguirão com alguma subtil maneira de representar.


Era assim à saída do século passado, depois entrámos no nosso século e tem sido sempre a descer. Resgate (Averno, Janeiro de 2017) é, até pelo título, um acto de resistência. O que aqui se resgata é uma forma de escrever sobre livros. Nos textos seleccionados, todos eles provenientes do Expresso, entre 1987 e 2000, quando aí Fátima Maldonado exerceu crítica literária, vislumbramos um tempo que nos é hoje estranho. Sem entrar nos pormenores de estilo devidamente identificados por Manuel de Freitas no prefácio, a estranheza ao ler estes textos, maioritariamente dedicados a obras escritas por mulheres, advém da constatação de várias impossibilidades. Uma delas é a da ampla informação biográfica quando os textos se dedicam a analisar obras de autores com biografia, isto é, autores com passado que mereça ser revelado e relacionado com a obra produzida. Outra impossibilidade à luz dos dias correntes é a da conexão de um texto com o tempo em que foi escrito, apontando leituras desse tempo, mais ou menos testemunhais, cada vez mais vagas «nesta casa do mundo onde à degradação se chama agora divertimento» (p. 113). É sem dúvida um desafio ingrato procurar uma visão do mundo na generalidade dos escritores que preenchem a actualidade, tão arredados que andam desse mesmo mundo dando à luz obras com uma periodicidade matemática. Talvez o cenário seja passageiro, talvez tenha vindo para ficar. Certo é que não está só cada vez mais difícil escrever sobre os outros, está igualmente cada vez mais difícil ler alguém que escreva inteligentemente sobre os outros.

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito obrigada.
Desconhecia e já crescentar à lista de compras.

Desculpe, saberá por acaso o que se passa com a editora Cavalo de ferro? Desde Novembro que não edita nada. Nem o facebook mexe. É estranho. Obrigada e desculpe-me a pergunta.

hmbf disse...

Pode perguntar à vontade. Não tenho resposta para lhe dar.