Quando há anos andei pelo Egipto, uma das perguntas que
mais vezes registei entre turistas foi: "por
que nos odeia tanto esta gente?" Podemos supor a mesma questão formulada, em inúmeras circunstâncias, por um qualquer herdeiro da cultura
árabe, esteja ele em Bagdade, Alepo ou Cabul. Reencontrei o problema,
recentemente, num excelente ensaio do historiador libanês Samir Kassir (1960-2005), assassinado em Beirute na sequência de um atentado com veículo
armadilhado. Em Considerações Sobre a Desgraça Árabe (Edições Cotovia, 2.ª
edição, Maio de 2017), Kassir formula a pergunta “Porque é que eles nos odeiam?”
a partir de uma reflexão acerca da vitimização que, em grande parte, vem alicerçando o
islamismo jihadista, obstaculizando uma afirmação progressista da cultura árabe
no mundo. Declaradamente laico, o autor não se inibe de citar Nietzsche para colocar
essa islamização das sociedades árabes ao nível de «uma visão da religião como
sistema de crueldade» fortalecida pelo culto do sangue e da morte. Ora, a principal razão pela qual nos interrogamos quanto
a um eventual ódio que separa o Oriente do Ocidente tem que ver, quanto a mim,
com uma terrível ignorância do outro, caricaturada, por cá, no preconceito etnocêntrico
de que tudo quanto é bom só reconhece a assinatura da civilização
ocidental. Facilmente a história desmentiria o preconceito, mais ainda num caso
como o português onde a presença árabe deixou marcas culturais suficientemente
fortes para não ser esquecida (mais que não seja na língua que falamos todos os
dias).
Tempos idos, como é óbvio, incapazes de evitar «que o olhar europeu sobre os árabes raramente seja desprovido de emoções, do mesmo modo que alimenta o rancor dos árabes por já não serem depois de terem sido». Tanto assim é que quando algo de belo e de positivo chega dessas bandas a tendência é para justificarmos o achado com a ocidentalização dos povos. Interiorizamos diariamente, apoiados numa opinião mediática desinformada, a ideia do mundo árabe como mundo parado, estagnado, deveras atrasado face ao ocidente, embora próspero em sociedades localizadas, mas fechadas às liberdades sociais, castrador da criatividade artística, homofóbico, machista, mundo de príncipes multimilionários e povos miseráveis, região politicamente instável, viveiro de fundamentalistas capazes de espalhar o terror internacionalmente. Os ataques de 11 de Setembro de 2001 agravaram o panorama, fazendo-nos esquecer, a título de exemplo, que um dos principais arquitectos de tais ataques foi um amigo do Ocidente outrora apresentado pela imprensa norte-americana como herói ao serviço da liberdade enquanto combatia o avanço da URSS pelo Afeganistão. Nunca será excessivo recordá-lo.
Tempos idos, como é óbvio, incapazes de evitar «que o olhar europeu sobre os árabes raramente seja desprovido de emoções, do mesmo modo que alimenta o rancor dos árabes por já não serem depois de terem sido». Tanto assim é que quando algo de belo e de positivo chega dessas bandas a tendência é para justificarmos o achado com a ocidentalização dos povos. Interiorizamos diariamente, apoiados numa opinião mediática desinformada, a ideia do mundo árabe como mundo parado, estagnado, deveras atrasado face ao ocidente, embora próspero em sociedades localizadas, mas fechadas às liberdades sociais, castrador da criatividade artística, homofóbico, machista, mundo de príncipes multimilionários e povos miseráveis, região politicamente instável, viveiro de fundamentalistas capazes de espalhar o terror internacionalmente. Os ataques de 11 de Setembro de 2001 agravaram o panorama, fazendo-nos esquecer, a título de exemplo, que um dos principais arquitectos de tais ataques foi um amigo do Ocidente outrora apresentado pela imprensa norte-americana como herói ao serviço da liberdade enquanto combatia o avanço da URSS pelo Afeganistão. Nunca será excessivo recordá-lo.
A recente visita de Donald Trump à Arábia Saudita,
seguida de passagem estratégica por Israel, é mais simbólica do que possa
parecer, na medida em que torna clara a hipocrisia da realpolitik que
governa as relações internacionais entre o capitalismo ocidental e o médio
oriente. Desinteressados das populações, os líderes de cada um dos lados
apertam cinicamente as mãos depois de assinarem acordos comerciais que em nada
fazem transparecer preocupações de fundo com a realidade, seja ela o conflito
israelo-árabe enquanto fonte de repetidas frustrações para a parte oprimida, a
islamização da luta árabe e o recrudescimento do fundamentalismo na sequência
da invasão do Iraque ou, por consequência, a guerra na Síria e a visível
incapacidade do Ocidente em lidar com as hordas de refugiados oriundos da
região. Citando o texto de Samir Kassir: «Concentram-se aqui os
três males que obstruem o futuro: a ditadura, e que ditadura, sempre traumática
mesmo depois de ter desaparecido, a ocupação estrangeira e, devido às
derrapagens da ocupação, a violência cega que se justifica pelo messianismo
religioso» (p. 37). O massacre continua, ontem em Manchester, hoje em Cabul, amanhã sabe-se lá onde.
O défice democrático, não exclusivo dos árabes, talvez seja o mais grave dos males que obstruem o futuro, porventura por se conjugar no mundo árabe «com uma hegemonia estrangeira, o mais das vezes indirecta, por vezes apenas económica, mas que outras vezes, nos casos mais extremos — como o da Palestina e, agora, o do Iraque —, se aparenta a um novo colonialismo» (p. 49). Conseguem imaginar um senhor a olhar para os escravos enquanto se questiona: por que me odeia tanto esta gente? Talvez por se sentirem impotentes perante a força dominadora, talvez. Mas a mensagem de Samir Kassir é optimista, é anti-vitimização. Sem rejeitar o passado optimista do mundo árabe, ilustrando-o com exemplos de progresso e multiculturalismo que a historiografia ocidental tende a largar na penumbra, ele não deixa de apontar as causas e os efeitos de um processo de decadência e deterioração de praticamente todo o Médio Oriente. Como ultrapassar o tempo da desgraça?
«Isto passa em primeiro lugar por uma re-perspectivação do estatuto de Vítima ou, por outras palavras, por uma relativização do estatuto de vítimas a que as sociedades árabes se habituaram: não cultivando uma lógica de poder ou o espírito de vingança, mas aceitando a ideia de que, apesar das derrotas, o século XX trouxe aos árabes um certo número de conquistas graças às quais podem participar na marcha do mundo. Mas é preciso também, simultaneamente, rejeitar o pragmatismo que procura legitimar-se no culto da vítima: se não se pode aceitar que o fim justifica os meios para os poderosos, há que saber recusar isso também às vítimas. Na prática, isto significa não confundir o terrorismo com a resistência, pelo facto de o Ocidente confundir a resistência com o terrorismo» (p. 130).
O défice democrático, não exclusivo dos árabes, talvez seja o mais grave dos males que obstruem o futuro, porventura por se conjugar no mundo árabe «com uma hegemonia estrangeira, o mais das vezes indirecta, por vezes apenas económica, mas que outras vezes, nos casos mais extremos — como o da Palestina e, agora, o do Iraque —, se aparenta a um novo colonialismo» (p. 49). Conseguem imaginar um senhor a olhar para os escravos enquanto se questiona: por que me odeia tanto esta gente? Talvez por se sentirem impotentes perante a força dominadora, talvez. Mas a mensagem de Samir Kassir é optimista, é anti-vitimização. Sem rejeitar o passado optimista do mundo árabe, ilustrando-o com exemplos de progresso e multiculturalismo que a historiografia ocidental tende a largar na penumbra, ele não deixa de apontar as causas e os efeitos de um processo de decadência e deterioração de praticamente todo o Médio Oriente. Como ultrapassar o tempo da desgraça?
«Isto passa em primeiro lugar por uma re-perspectivação do estatuto de Vítima ou, por outras palavras, por uma relativização do estatuto de vítimas a que as sociedades árabes se habituaram: não cultivando uma lógica de poder ou o espírito de vingança, mas aceitando a ideia de que, apesar das derrotas, o século XX trouxe aos árabes um certo número de conquistas graças às quais podem participar na marcha do mundo. Mas é preciso também, simultaneamente, rejeitar o pragmatismo que procura legitimar-se no culto da vítima: se não se pode aceitar que o fim justifica os meios para os poderosos, há que saber recusar isso também às vítimas. Na prática, isto significa não confundir o terrorismo com a resistência, pelo facto de o Ocidente confundir a resistência com o terrorismo» (p. 130).
Para que a desgraça seja ultrapassada é preciso que autores como Samir Kassir ganhem voz, que as suas reflexões penetrem a consciência dos povos como um vírus e nela se instalem favorecendo o crescimento da laicidade contra a ignorância alimentada pelo discurso religioso. Todo o discurso religioso, pois é sempre da ignorância do outro, mesmo que revestida de tolerância, que ele se alimenta - estropiando a singularidade da pessoa humana ao mesmo tempo que vincula o indivíduo a um absoluto supostamente universal.
Samir Kassir, in Considerações Sobre a Desgraça Árabe,
trad. António Gonçalves, Edições Cotovia, 2.ª edição, Maio de 2017.
4 comentários:
O recado é válido para os árabes mas também, e sobretudo, para Israel.
that's a fact
Gostei tanto deste post que quis partilhá-lo com os meus leitores Anglófonos. Espero que não esteja muito mal traduzido.
https://claudiasousadias.wordpress.com/2017/10/06/from-the-weblog-antologia-do-esquecimento-by-henrique-manuel-bento-fialho-31-05-2017/
olá Cláudia. obrigado.
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