As mulheres dos três primeiros livros de Elena Ferrante,
reunidos em Crónicas do Mal de Amor (Relógio D’Água, Maio de 2014, 1.ª
Reimpressão: Outubro de 2016), vivem num constante estado de tensão. São
personagens perturbadas, estigmatizadas, antes de mais, pela ausência do outro. A
esta ausência respondem com conjecturas acerca da vida dos ausentes,
imaginam-se a viver no corpo de outrem, colocam-se nesse estado de stress entre
o que são na realidade e o que ambicionariam ser, perspectivando-se na
frustrante interpretação que fazem de si próprias a partir do que sabem da vida
dos outros. Delia, a personagem central de Um Estranho Amor, procura
descobrir-se a si própria reencarnando a vida da mãe. Amalia ter-se-á
suicidado. Delia regressa à Nápoles natal para o funeral da mãe, persegue-lhe
os passos, recorda-a, veste um vestido que era da mãe, tem uma relação com o
filho do amante da mãe, tenta imaginar que vida teria sido a da mãe vivendo a
sua própria vida como que condicionada, delimitada, pela constante presença de
uma figura ausente. Da mesma maneira, a Olga de Os Dias do Abandono vive
condicionada pela figura ausente do marido. Foi abandonada, ficou com dois
filhos nos braços e um cão que nunca quis, imagina o marido nos braços da
amante vinte anos mais nova, imerge desorientada num labirinto de raiva e fúria,
perde as estribeiras, deixa-se tomar por pensamentos obscenos que se reflectem
na linguagem e nos actos quotidianos. Já Leda, a mulher de A Filha Obscura,
é-nos apresentada num profundo estado de solidão. Professora universitária,
abandonou as duas filhas para se dedicar à carreira académica. As filhas vivem
no Canadá com o pai, de quem Leda se separou. Vamos encontrá-la numas férias na
costa jónica, à deriva entre a família numerosa
de napolitanos com quem se cruza na praia e a memória das filhas: «Já
percebi há muito tempo que conservo pouco de mim e tudo delas».
Delia, Olga e
Leda estão na casa dos quarenta, atravessam crises de identidade por razões
diversas, une-as a solidão, uma solidão que surge, antes de mais, do
desencontro consigo próprias, enquato ocupam os dias a pensar em
figuras ausentes, distantes. Delia e Leda aparecem-nos deslocadas dos seus
ninhos, desprotegidas, também, pela distância, ainda que no primeiro caso o
regresso às origens disfarce essa desagregação do espaço físico em que se
movimentam. Mas também Olga, apesar de permanecer na residência familiar,
assiste à derrocada do edifício protector. O seu próprio lar é um espaço em
decomposição.
James Wood, no prefácio que acompanha Crónicas do Mal de Amor,
diz-nos que «os romances de Ferrante poderiam considerar-se marcados, um pouco
tardiamente, pela segunda onda do feminismo, que produziu, entre outras
escritas, a ficção de Margaret Drabble sobre a prisão doméstica das mulheres
(…). Contudo, há qualquer coisa de pós-ideológico na ferocidade com que
Ferrante ataca os temas da maternidade e da condição da mulher. Parece apreciar
o excesso psíquico, a imoderação, a terrível e singular complexidade dos dramas
familiares das suas protagonistas». Esta ferocidade assume amiúde contornos de
histeria que nos levam para estados limite, perdemos a mão às emoções da
personagem, criamos sentimentos contraditórios relativamente às suas
personalidades. Olham invariavelmente para os homens com uma omnisciência
duvidosa, colocam-se acima do sexo oposto por uma espécie de conhecimento que
não é mútuo. Os homens destes romances até podem ser bons tipos, mas nunca são
mais do que isso. Quando não são bons tipos, são oportunistas, fracos,
indolentes. A determinada altura, é Leda quem o afirma: «Os homens têm sempre
alguma coisa de patético, em qualquer idade. Uma insolência frágil, uma audácia
temerosa. Hoje já nem sei se alguma vez despertaram em mim amor ou apenas uma
afectuosa compreensão pelas suas fraquezas».
Fortemente marcadas pela experiência
do corpo, as mulheres de Ferrante activam a espiritualidade através de uma
sexualidade desinibida mas, muitas vezes, fútil e desesperada. À consciência
que têm do seu próprio corpo corresponde uma consciência de si próprias, num
estado de isolamento que faz da relação com o outro mero pretexto para um conhecimento de si. Não são raros os momentos em que se olham ao
espelho, muitas vezes observando a genitália com considerações acerca de si
próprias que excedem o trivial. Estes momentos conferem-lhes uma materialidade,
uma pessoalidade, uma carnalidade que as torna físicas apesar de serem
personagens.
As mulheres de Elena Ferrante são eminentemente físicas, esse é um
dos aspectos que as torna mais atractivas. Têm pouco de abstracto tendo pouco de concreto, vivem como qualquer um de nós sabe que podia viver. A caracterização psicológica que
delas é feita não prescinde os contornos do corpo, gerando entre este e a
psique um estimulante jogo de correspondências, desafios, relações
causa-efeito. Olga cita, a páginas tantas, Anna Karénina. E questiona-se: «Que
tensões desvairadas nos impelem a formular as nossas exigências de sentido?» As
mulheres de Elena Ferrante são uma tentativa de dar resposta a esta questão. E dão. Por onde quer que circulemos, vamos sempre dar ao mesmo: à família, ao universo doméstico, ao castelo.
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