quinta-feira, 1 de junho de 2017

DOIS LIVROS DE PAULO DA COSTA DOMINGOS

Três anos separam a publicação de «voici la poésie ce matin et pour la prose il y a les journaux» (Outubro de 2014) e A Céu Aberto (Fevereiro de 2017). O primeiro surgiu no ano em que comemorámos 40 anos de regime dito democrático, tendo sido, por ironia, a publicação 074 da editora Averno. Paulo da Costa Domingos (n. 1953) começou a publicar ainda antes do 25 de Abril de 1974, praticando uma poesia atenta a vanguardas do séc. XX tais como o surrealismo e a poesia Beatnik. O tom contestatário foi sempre uma forte marca da sua poesia, pese embora o travestismo formal adoptado ao longo dos primeiros anos. Mais recentemente, uma revisão da obra inicial, com novas versões dos livros Gogh, Uma Orelha sem Mestre (1ª edição 1975, nova versão em 2004) e Asfalto (1ª edição 1977, nova versão em 2005), salientou um processo de inflexão no tipo de discurso escolhido para sublinhar o tal tom da sua poesia, por vezes confundido com as designações algo superficiais de poesia política ou, na pior das variantes, panfletária.
A paráfrase de José Afonso no pórtico de «voici la poésie ce matin et pour la prose il y a les journaux», substituindo a palavra “morte” pela palavra “capital”, não deixa dúvidas quanto à intenção de sujeitar o discurso poético a uma crítica do mundo que não se esgota na agitação de bandeirolas partidárias. Antes pelo contrário, o poeta distancia-se tanto quanto lhe é possível do contexto social de que é inevitavelmente parte integrante, sem que nele esteja submerso, para sobre ele lançar um olhar vigilante. Trata-se, pois, em ambos os livros, de uma poesia vigilante, atenta às contradições do seu tempo, às desilusões repercutidas pelos factos, onde mais do que apontar criminosos e vítimas se elencam os danos de um falso progresso: «Os animais domésticos chegam-se / à prometida sombra / para os diálogos imaginários / e o afago do pêlo. No seu mundo / de (eventual) violência / o fascismo do capital mantém-lhes / a ortografia intacta, inequívoca / a fonética» (p. 14, de voici lá poésie…). Os mesmos danos se exprimem, agudizados por uma linguagem menos figurada, num furioso poema de A Céu Aberto:

TIRA

Bofetões. É o que levais
desta vida. Falta de tempo
para fugir ao sofrimento.
Masturbações às escondidas,
tais e tantas e de tantas
formas aos patrões, que já nem
sabeis qual o vosso sexo.

E outras coisas que não ficam bem
ditas num poema para a risível
História da Literatura, é o que levais
enquanto uns poucos, os puros
habituais, só consomem recursos.

Por isso, ide e julgai esses,
olhai direito nos olhos
o vosso sustentável vampiro.

A nu.

Sendo indefinido o sujeito a quem se dirige o poema, podemos pressupor que entre o autor e quem o leia gera-se um diálogo cúmplice acerca do panorama social reconhecido por postulação. O que aqui está em causa é sobretudo uma afirmação da liberdade enquanto valor fundamental, contra tudo quanto a esse valor se oponha manipulando, impedindo, traindo o indivíduo (incluindo o próprio indivíduo quando, irracionalmente, absorvido pelo inútil, se permite ser escravo das aparências). Que mais nobre função podemos dar à poesia senão esta de se imiscuir no mundo para que mais clara se torne a vida? Assim sendo, no horizonte limitado da actualidade é fácil identificar nestes poemas os agentes corrosivos de um tempo que é o nosso, sejam eles «banqueiros e pederastas» ou o «capitalismo fractal». Mas na sua extensão de quatro conjuntos — Conflito, A Céu Aberto, Águas Sem Revolta, Estrela de 5 Pontas —, o mais recente destes dois livros excede as fronteiras do tempo em que se inscreve assumindo para a Arte o lugar de «mexer / na porcaria porque só porcaria há» (p. 91) e, desse modo, nos fazer descer à terra, «à terrena verdade» (p. 108).
A rua é o lugar por excelência destes poemas, apoiados num modo de olhar crítico que não se demite da beleza. Antes questiona com exemplar lucidez a sua possibilidade. Não por acaso, é precisamente num poema intitulado Mau Olhado que mais eloquentemente se declara esse emprego: «A branca vela do meu peito, / ao contrário do que dizem, chama / o rubro sopro vital da Beleza» (p. 53). Mas a beleza, neste contexto, distingue-se do belo, diria que se trata da face epicurista do belo, é um estado que não se herda, implica cuidados, mais que não seja o de afastar destemidamente tudo quanto ameaça expulsá-la das nossas vidas: «Expulsa do lugar onde reina / a ganância, o ruído e o ciúme / vai fermosa e não segura: a Beleza» (p. 63). A evocação camoniana não é acidental, na medida em que conseguimos adivinhar uma conexão entre esta beleza e a própria poesia. Ou seja, ao estar em causa a Beleza é a própria poesia que se coloca em causa. O aspecto formal cuidado destes poemas também o sugere, a despeito da linguagem obscena suscitada pela própria indecência dos palcos e respectivos actores convocados. Seja quando em sonho se declara o «Dia claro; não há que inventá-lo» (p. 33, de voici la poésie…), seja quando em entoação naturalista um breve instante de recolhimento resulta numa imagem melancólica dos dias:

CAIS DAS COLUNAS

Fui ali sentir uma aragem no rosto e
pedir a mim mesmo somente um pouco
de sossego, mas eu era um peão
do poema a rugir de encontro
à muralha dos ministérios.

E as mulheres que ali vinham
lutavam… ¡ó como lutavam elas!
por sapatos de salto e lingerie
para melhor saltarem no vazio
dos mistérios ocultos no rio.

(E não sendo assim, é cinza
que se acumula nas pestanas
de gente de barbatanas munida
para a travessia do denso
negrume das avenidas.)

Os meus olhos choraram sal
sobre a nefasta semente desse
trabalho assalariado, cansado,
com o rosto de encontro à pedra
como um miúdo no quarto escuro. 

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