Exactamente no mesmo ano em que deu corpo a Johnny ‘Guitar’
Logan, naquele que é para muitos o melhor western de todos os tempos, o actor
Sterling Hayden foi protagonista num filme de Lesley Selander (n. 1900 – m.
1979) intitulado Arrow in the Dust/A Coragem de Um Desertor (1954). Bart Laish
é o desertor da cavalaria que irá fazer-se passar pelo Major Andy Pepperis, com
o qual mantinha velhas afinidades, na missão de escoltar uma caravana de emigrantes
do Oregon a caminho de porto seguro no Velho Oeste. Em 1954, Selander contava
com inúmeros westerns no currículo. Estreara-se dezoito anos antes com dois
filmes do género, dando visibilidade, nos primeiros tempos, ao lendário actor
Buck Jones, uma das maiores estrelas do western de série B. The Lone Ranger foi
uma das figuras icónicas que ajudou a erguer.
Arrow in the Dust é, como muitos dos seus filmes, rápido
e repleto de cenas de acção, com diversas sequências de tiroteio e de perseguições.
Os efeitos são algo incipientes, embora absolutamente secundarizados pela preocupação
de contar uma história com subtilezas que podem passar despercebidas. Tal como o título original indica, e o título português ignora, este
filme deve ser visto a partir da perspectiva dos índios. A figura do desertor herói
é já por si fortemente polémica, mais ainda por Sterling Hayden não lhe
oferecer problemas de consciência. A decisão de fazer-se passar por um Major
assassinado mistura oportunismo individualista com uma vontade algo ligeira de
fazer qualquer coisa de moralmente aceitável. A flecha cravada na poeira é
também um símbolo dessa união, assim como o é da união de duas tribos rivais
contra a cavalaria.
A primeira vez que vemos um índio neste filme é logo na
sequência inicial, quando Bart Laish entra numa taberna para beber um uísque
enquanto foge de um grupo de soldados que o tenta capturar. O índio está de costas, dentro da
taberna, a observar um par de botifarras. Não lhe vemos o rosto, sabemos que é
índio pelas vestes e pela pena no cabelo. Há ainda dois jogadores numa mesa e
uma criança que se aproxima de Bart Laish para pedir esmola. Este pergunta-lhe
se é órfão, ao que a criança responde afirmativamente. Dá-lhe uma moeda e
deseja-lhe sorte. Logo de seguida a criança avisa-o da aproximação dos soldados
e Laish parte, mais uma vez, em fuga. Qual o papel daquele índio que vemos pela
primeira vez de costas? Terá alguma relevância nesta sequência inicial?
Logo de seguida, iremos encontrar índios mortos, tombados
em combate na sequência de emboscadas sucessivas, vamos encontrá-los prontos
para a guerra, organizando-se com flechas e machados contra as armas de fogo da
cavalaria. Rasacura é o chefe dos Pawnees, aqui aliados com uma tribo Apache,
protagonista sem falas e apenas uma efémera aparição. Os índios não falam neste
filme, limitam-se a atacar com comportamentos que obrigam os seus adversários a
questionarem-se sobre o porquê daquelas inusitadas acções de guerra. Bart Laish será uma
espécie de intérprete neste conflito, fragilizado pelo embuste que é a sua
situação particular e que o obriga a relações de confiança com Crowshaw — o
batedor que sabe não ser Laish o Major Andy Pepperis, mas que ainda assim aposta não o
denunciar. Por que ataca Rasacura esta caravana quando deixou passar todas as
outras? O que tem esta caravana de especial? Por que se dirigem especialmente nos
seus ataques a uma das carruagens? Perceberemos tudo isso no final.
O interesse de Arrow in the Dust está no jogo hermenêutico
exercido entre as duas partes do conflito e na relação de confiança mantida entre Crowshaw e Laish. Tal como o índio que no início
observava um par de botas ocidental, Bart Laish observa os índios e tenta
compreendê-los. Percebe que a guerra deles não é uma guerra pelo poder, é antes
uma guerra pelo equilíbrio de poderes. Eles não pretendem arrasar o inimigo,
pretendem não ficar à mercê do inimigo. A luta dos índios neste filme é, tal
como a luta interior de Bart Laish, uma luta pela liberdade e pela autonomia.
Daí que seja justo considerar o desertor Sterling Hayden como o único índio a
quem Lesley Selander ofereceu falas nesta narrativa. Não podemos deixar de lhe
gabar a ousadia, que à época não era assim tão indiferente quanto isso. Estávamos
no auge do McCarthyism, política de perseguição que teve no actor Sterling
Hayden uma das suas mais famosas vítimas. Acabou por confessar ligações ao
comunismo delatando colegas de trabalho. O arrependimento não sanou as feridas.
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