De quando em vez vem à baila o tema do racismo. Será
Portugal um país racista? Mas que raio de dúvida! Claro que é. Quem souber de um
país que tenha sido colonizador e não seja racista, atire a primeira pedra. Mas
o que é um país racista? A segregação racial, que até há muito pouco tempo era
uma realidade portuguesa, desapareceu (a social ainda é). Nos Estados Unidos da América, esse
país da Estátua da Liberdade, foi lei. Bob Dylan canta sobre o assunto. Fizemos
fortuna no tráfico de escravos, ora. Isso passou? Mais ou menos. As leis domesticaram-nos
a maldade, fomos obrigados a baixar a bolinha. Portugueses emigrados em países
como a Suíça, Luxemburgo, Bélgica, Polónia, queixam-se do racismo desses
países. Ainda há tempos, um tipo que conheço de uma transportadora tentou fazer
vida no Luxemburgo. Veio de lá a bufar cobras e lagartos contra o racismo dos
cabrões. De novo instalado ao volante do seu TIR, sente-se à vontade para dizer
que não gosta de pretos. Só de pretas. E ri. Ciganos, nem vê-los. Nem ciganas.
Não sei se quem por aqui passa estará recordado deste post sobre um cigano que
andava à procura de trabalho e foi baleado por um agente da PSP: «Foi alvejado
por um agente da PSP que depois de o atingir na cara, levando-lhe parte da
dentadura, rematou o gesto com a seguinte sentença: “Tenho um ódio aos ciganos,
e à vossa raça, que se pudesse matava-os a todos”. O Tribunal de Beja condenou
o agente com uma pena suspensa de um ano e três meses de prisão». Pena
suspensa, como no caso dos trafulhas da Universidade Independente. Os ciganos
são vítimas especiais do nosso racismo, do nosso e do resto do mundo. Vivem lá
na deles e a malta não gosta, quer os ciganos civilizados. Como quis os índios até dar
cabo deles. Sim, claro que somos racistas. Até porque somos do mais parvo que possa
haver. Homo Sacer e os Ciganos, de Roswitha Scholz, seria leitura recomendável por estes dias.
Infelizmente, não tenho amigos do peito que sejam pretos. Nem ciganos. Só conhecidos e vizinhos. Gostava de ter amigos pretos e
amigos ciganos para poder dizer que não sou racista, assim como um gajo que é
amigo de paneleiros diz que não é homofóbico. Dá sempre jeito ter amigos das
minorias por perto, para credibilizarem uma pessoa. O mais que tive foi
one-night stand com uma mulata. E toda a vida vivi junto de ciganos. Brinquei
na infância com ciganos, cresci a ver o meu pai fazer negócio com ciganos
(vendia-lhes monos que eles depois revendiam nas feiras), moro junto a um
bairro que é por aqui conhecido como Bairro dos Ciganos. Infelizmente, nunca
tive problemas. Gostava de ter tido, para poder despejar o meu ódio nessas
raças imundas. Mas nunca tive. Como é que Camões de referia aos indianos?
As únicas vezes que fui assaltado foi por gajos
brancos, um deles até bastante loiro. Foi no Bairro Alto. Comprei droga algumas vezes, mas sempre a filhos de boas famílias. Alguns com negócios abertos
insuspeitos numa sociedade que acolhe sempre bem os seus filhos mais
produtivos. Tenho tido azar na vida, sempre que sou enganado, ludibriado,
roubado, sempre que me vão ao bolso, sempre que fui traído, foi por tipos
decentes. Alguns até bastante católicos. Pelo menos fizeram o crisma e vão à
missa. Num país com tantos trafulhas à solta, não deixa de ser admirável que
as pessoas continuem a destilar os seu ódios sobre minorias. Há razões
objectivas para que assim seja, claro. Desde logo, serem minorias. Depois, no
caso dos ciganos, são quase por regra uma minoria desprotegida pela baixa escolaridade.
Um burro adora dar coices noutro burro. Um tipo com o 12.º sente-se um doutor
ou um engenheiro quando dispara contra "a ciganagem que mal sabe ler e escrever".
Esta altivez dos burgessos é coisa muito nossa, da qual não nos livraremos
assim tão facilmente.
Os meus amigos sabem que se há tema que me leva aos
arames é o do racismo, sobretudo contra ciganos. Estes estão em todos os meus livros
por razões de afecto e de admiração que não cabe aqui esclarecer. Prefiro partilhar
um conto que publiquei num pequeno volume intitulado Call Center (Companhia das
Ilhas, Junho de 2014), na esperança de que possam encomendá-lo (é
mentira, já não tenho esperança alguma):
ÁRABE
Um árabe foi
assassinado no meu bairro. Alguém desconfiou dos ciganos. Sempre que algo
inusitado acontece no meu bairro, alguém desconfia dos ciganos. E sempre que
alguém desconfia dos ciganos, todas as suspeitas recaem sobre os ciganos. Sucede
que o árabe assassinado era cigano. Na perspectiva dos ciganos, este pormenor
excluía-os do grupo dos principais suspeitos. Por outro lado, na perspectiva
dos restantes moradores, era precisamente este pormenor que mais contribuía
para a desconfiança recaída sobre os ciganos. Toda a gente sabe de
variadíssimas histórias de retaliações familiares entre a comunidade cigana, diziam
os restantes moradores. Histórias que não são um atributo exclusivo desta etnia
mas nela se revelam muito mais frequentes, explicavam os especialistas. À excepção
dos guineenses, rematavam os restantes moradores.
No decorrer das
investigações, foi claro que as suspeitas dos investigadores se inclinavam para
a versão dos restantes moradores. Curiosamente, um desses moradores era
guineense. Precisamente o mesmo que reparou no facto do detective responsável
pela investigação ser, ele próprio, de etnia cigana. Isto gerou algum
burburinho junto da comunidade. Se por um lado não podiam os ciganos queixar-se
de discriminação racial, por outro lado também não podiam os restantes
moradores garantir a imparcialidade nas investigações.
As pessoas
começaram a discutir a pertinência daquela opção. Gerou-se um grande debate nacional
em torno do tema, com entrevistas para as televisões, artigos de opinião
publicados nos jornais, pareceres em linha aberta nas rádios de todo o páis,
programas em directo com vários convidados. Foram criadas associações de defesa
de diversos pontos de vista, conforme estes fossem a favor ou contra o que quer
que fosse na questão em debate, inclusivamente a existência de pontos de vista.
O tema, que ficou por encontrar a luz amena de uma solução, ainda hoje é motivo
de inflamadas discussões.
Quanto ao árabe
assassinado no meu bairro, posso garantir que era de etnia cigana. E que foi assassinado
no meu bairro.
Henrique Manuel Bento Fialho, in Call Center, com
ilustração de Bárbara Fonseca, Junho de 2014, pp. 17-18.
3 comentários:
Gostava de o ter. Posso encomendar-to quando for a Pt no Natal?
Ó Cláudia, isso é mesmo com a Companhia das Ilhas. Obrigado.
Ok. Eu contacto-os.
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