quinta-feira, 13 de julho de 2017

UM GRANDE PISTOLEIRO

   Johnny Guitar, de Nicholas Ray (1954), foi o último filme que vi com António Reis. Johnny é um grande pistoleiro, mas no filme não dispara um único tiro. Esta ideia, esta estética, era central para António Reis. Punha-se uma pergunta: se nunca dispara, como é que sabemos que é um grande pistoleiro? O segredo está no comportamento de Johnny. Ele antecipa todos os movimentos dos outros, inimigos e amigos; antecipa todos os seus próprios movimentos. Não quer disparar porque tem medo. Sabe que um tiro leva sempre a outro tiro e que a vingança não tem fim (aliás, a única vez em que dá um disparo no filme é para desarmar um jovem pistoleiro que não sabe o que faz com a sua arma...). Mas, voltando à pergunta, como é que sabemos em concreto que ele é um grande pistoleiro se não dispara? Johnny também é um grande virtuoso da guitarra, isso fascinava António Reis, mas o momento essencial para ele é um momento quase escondido na narrativa, quando no início chegam os antagonistas e Johnny consegue acalmá-los conversando, mas no momento crítico há um acidente e uma chávena vai cair do balcão do saloon e despoletar a violência. Sub-repticiamente apanha a chávena com um gesto do braço para trás. A surpresa deste anticlímax pára o crescendo da violência e a tensão desfaz-se. Inconscientemente, os antagonistas, e os espectadores, temem-no.

Joaquim Sapinho, in A Narrativa das Sombras, posfácio a Poemas Quotidianos, de António Reis, Edições Tinta-da-china, Julho de 2017, pp. 120-121.

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