O único romance de Rainer Maria Rilke (n. 1875 – m. 1926)
foi publicado em 1910, dando vida a um jovem escritor chamado Malte Laurids
Brigge: «Aqui estou sentado no meu pequeno quarto, eu, Brigge, com vinte e oito
anos já feitos e que todos ignoram. Aqui estou sentado e não sou nada. E, no
entanto, este nada começa a pensar e pensa, num quinto andar, numa tarde
parisiense cinzenta» (p. 50). As Anotações de Malte Laurids Brigge (Relógio D’Água,
2003) recolhem, em breves trechos, os pensamentos desse jovem enquanto deambula
pelas ruas da cidade de Paris, quando se perde no labirinto da memória, quando
divaga sobre temas existenciais ao sabor da pena. Lembramo-nos do Livro do
Desassossego ao ler estas anotações, mas a comparação não é justa. Ou talvez
seja meramente formal. O olhar deste jovem solitário, mesmo quando se mistura
entre o povo (jamais com o povo), é um olhar burguês, apesar de tudo apaixonado
e algo deslumbrado pelos ouropéis de uma aristocracia em decadência. Nele se
misturam fé e doença, a febre das visões e a imaginação dos místicos. A morte é
um dos seus temas, e sobre a morte profere afirmações tão frias que, ao lê-lo,
chegamos a duvidar de que estamos vivos. Estaremos?
Brigge escreveu «um estudo
sobre Carpaccio, que é mau, um drama chamado Matrimónio e que pretende provar
algo falso com meios ambíguos, e versos» (p. 48). Apesar de lhe desconhecermos
os versos, persentimos-lhes a exigência: «Para conseguir um verso é preciso ver
muitas cidades, pessoas e coisas, é preciso conhecer os animais, é preciso sentir
como voam os pássaros e conhecer o gesto das pequenas flores quando se abrem de
manhã» (idem). Mas Brigge é de uma autocrítica implacável, escreveu versos que,
afinal, segundo os seus padrões não podem ser considerados versos. Enquanto
escritor, considera-se um logro. Esta ideia de logro mistura-se-lhe
com a vida, com a existência. Será a vida de um homem um logro? Entregues aos
caprichos do acaso, talvez sejamos acidentes da natureza.
O medo é outro dos seus
temas. Pobre Brigge, marginalizado, doente, tanto que quiseram fazer nele
experiências com choques eléctricos. Pobre, isolado, solitário, Malte. A morte, o medo,
a solidão, o vazio, são o que nele se impõe para lá das alucinações. A mãe
queria-o menina, ele disfarçava-se, mascarava-se, via perecer por detrás da
máscara o rosto da realidade. Talvez Malte seja um reflexo de Rainer, talvez
entre Rainer e Malte exista uma proximidade que põe em xeque a verdade no
tabuleiro da escrita. Dispensamos uma narrativa linear para que esta história
seja contada, a história da criatura assimilada pelo criador. O que haverá de
Malte em Rainer? O que haverá de Rainer em Malte? O vazio? O medo? A solidão? A
morte. O autor vive e experiencia a morte da personagem, a personagem é em si
mesma a morte do autor. A essência da personagem é a morte do autor. Os
espíritos que pairam no ar ao longo do livro isso mesmo indiciam, as visões do
jovem Malte, as alucinações, não nos indicam outro caminho senão o desta
espiritualidade aplicada à criação literária. A personagem vê o espírito do
autor, do seu criador, como uma espécie de fantasma ou anjo que a persegue. Da
mesma forma, o autor é perseguido pelo fantasma da personagem. A existência de
ambos revela-se nesta morte partilhada. Encontram-se como que num quadro, o
tempo foi suprimido, o espaço real é agora outro, é o espaço de um encontro
para lá das coordenadas que oferecem uma ilusão de materialidade ao mundo.
Escutemos o próprio Malte Laurids Brigge: «Muitas vezes ponho-me a pensar como
nasceram o Céu e a Morte: foi porque afastámos de nós o que nos era mais
precioso, porque havia ainda tantas outras coisas a fazer primeiro, e porque
essas coisas preciosas não estavam em segurança em nós, seres tão ocupados.
Agora passaram séculos sobre isso e habituámo-nos a coisas menores. Já não
reconhecemos o que nos é próprio e assustamo-nos perante a sua extrema
grandeza. Não será isto possível?» (p. 159) No início do século XX, Rilke fazia
um esforço final, através da sua personagem, contra o niilismo que então tomou
conta do universo humano. «Afastámos de nós o que era mais precioso»,
«habituámo-nos a coisas menores», «já não reconhecemos o que nos é próprio e
assustamo-nos perante a sua extrema grandeza». O que nos é próprio é a
espiritualidade, tenha ela por objecto glorificador uma ideia abstracta de Deus
ou a Natureza. É no seio da cidade, acossado pelos ruídos da cidade, que este
jovem toma as suas notas isoladamente, distanciado de um mundo que voltou
costas à espiritualidade. Comove-nos, não porque como ele tenhamos ou sintamos
provas da Tua existência. Comove-nos como nos comovem todos os homens solitários,
aqueles que podem concluir: «este século tinha de facto tornado terrenos o Céu
e o Inferno: ele vivia das forças de ambos para sobreviver a si próprio» (p.
199).
O misticismo de Rainer Maria Rilke não nos repele, admiramo-lo como a uma obra de arte por
nele antevermos a dor de um confronto terrível com o vazio. Não é por acaso que
em páginas tão próximas surgem evocações de Mariana Alcoforado e do olhar desorientado
dos cães inseguros, pois «assim andamos nós, escárnio e metade de nós mesmos:
nem seres autênticos, nem actores» (p. 206). É esta indefinição aquilo que mais atormenta
o espírito de Malte Laurids Brigge, como hoje a pós-verdade atormenta a consciência do niilista. O problema já não é em que acreditar, o problema é não ter em que acreditar.
A mentira impôs-se não deixando por detrás da máscara rosto algum, houve como
que uma fusão entre o rosto e a máscara e é já tudo plástico, estilo,
maquilhagem. Deus reduzido ao santuário, a Natureza reduzida ao zoológico, a
humanidade perdida entre ambos como um mero visitante.
Rainer Maria Rilke, As Anotações de Malte Laurids Brigge, trad. e pref. de Maria Teresa Dias Furtado, Relógio D'Água, Dezembro de 2003.
3 comentários:
Por detrás da máscara o vazio.
Dei por isso há anos quando conheci esta música:
https://www.youtube.com/watch?v=vAFVSgNNslo
A letra é de Peter Hammill:
'
He's a man of the past and one of the present
A man who hides behind a mask behind a mask;
A clown, a fool, believing it cool to be down
Or that the game is all about who laughs the last
So he tells all his problems to his friends and relations
Exposes his neuroses to their view
They accept as fact every masochistic mumble of his act –
But how could they know what was false and what was true?
Sometimes when he wakes
He feels he's walked into a dream
But all it takes
To remind him things are what they seem
Is the belief that the man behind the mask can really dance
Pirouetting smile
He feels himself cavorting
Pierrot for a while
Before aborting
To find relief in the shelter of the dark, most telling mask
After all the pantomimes are ended
He peels all the make-up off his face
To reveal, beneath, the tears running all down his cheeks:
Alone, he opens to the world… but it's much too late
He's been left, in the end, without a face
'
"o problema é não ter em que acreditar..."
não ignorando o fosso enorme do vazio, ainda sou pelo "Deus das pequenas coisas", nem estou a falar do Deus das religiões monoteístas, mas antes de uma espiritualidade que anda dispersa na vida. E que tanto nos deixa mudos, como nos surpreende em tantas daquelas coisas que aqui vais falando.
Grato a ambos pelos comentários.
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