Um dos desafios colocados ao leitor por obras tais
como as Confissões, de Jean-Jacques Rousseau (n. 1712 – m. 1778), é o de a todo
o momento termos de manter certa desconfiança para com o autor, não tomando como
verdade absoluta e definitiva a palavra de quem se confessa. Há uma intenção
neste tipo de escritos que a tal obriga, nomeadamente a defesa de si mesmo
levada a cabo por quem escreve e lega à posteridade uma perspectiva pessoal e subjectiva,
defendendo-se de quem e do que a ele se tenha oposto em vida, uma defesa em
nome de uma verdade, não necessariamente da verdade. Jorge de Sena, no prefácio
à edição portuguesa com o selo da Relógio d’Água (1988), doze livros
distribuídos por dois volumes concluídos com um proveitoso sumário, alerta-nos
para os factos sob a forma de interrogações: «Foi Rousseau sincero nas
Confissões? A sua sinceridade é fingida? É impossível a sinceridade que ele
buscou? A divisão, em que ele culminou, para autojustificar-se, entre Rousseau
e Jean-Jacques, não será o símbolo de que a sinceridade é dupla e dúplice,
conforme é literária ou humana?» Por vezes contraditório, outras vezes ambíguo,
aqui e acolá lacónico, Rousseau fez a sua defesa, porque disso se trata, não
no plano da verosimilhança ou da veracidade, não no plano da autenticidade ou
da sinceridade, mas antes no plano da retórica, procurando convencer os seus
leitores da boa vontade que o terá guiado em vida, contra as acusações de
misantropia, de arrogância, de ateísmo, de cólera, de desonestidade, entre outras que o atingiram. No que coincidem réu e acusação, podemos estar certos de que o autor de
Confissões foi uma das mentes mais brilhantes do seu tempo. E não foram poucas
as que nos ficaram do séc. XVIII.
A vantagem de Rousseau sobre os demais são as
curiosidades biográficas, os dilemas e certas opções, notas que conferem à sua
história um interesse de tipo cinematográfico. Porventura estaremos no campo do
caricato, da menos interessante das dimensões num Autor deste calibre, embora a
vivacidade com que legou à posteridade este auto-retrato possível nos leve a
crer em fundamentos para o pensamento cuja ligação à vida vivida, à existência
e à experiência, terá sido determinante. Natural de Genebra, não chegou a
conhecer a mãe. Faleceu esta na sequência do parto. «A minha infância não foi a
de uma criança; senti, pensei sempre como um homem. Foi só quando cresci que
entrei na classe ordinária; ao nascer, tinha dela saído. Rir-se-ão de me verem
modestamente apresentar-me como um prodígio. Pois sim: mas quando se fartarem
de rir, achem uma criança que, aos seis anos, se prenda, interesse e entusiasme
por romances a ponto de se desfazer em lágrimas com eles; então, sentirei a
minha vaidade ridícula, e convirei que ando mal» (Vol I, pp. 72-73). Mas não
eram apenas os romances que entusiasmavam Rousseau. O amor à Natureza, a inclinação
para o isolamento, os passeios solitários, ficaram-lhe da infância para a vida.
Sobre eles escreveu páginas imprescindíveis, na decorrência deles chegou a
notáveis conclusões: «Geralmente, os protestantes são mais instruídos do que os
católicos. Deve sê-lo assim: a doutrina de uns exige a discussão, a dos outros,
a submissão» (Vol I. p. 75). E o autor de Emília experimentou ambas as
doutrinas, com conversões e reconversões ao longo da vida que lhe valeram fatais acusações de ambivalência religiosa.
Entre os episódios mais caricatos
destas memórias, conta-se a aventura ingénua, embora picante, com certo mouro
em contexto de seminário. A sexualidade chegou-lhe pelas mãos da pederastia, ao
que parece velha tradição católica longe de ter sido ultrapassada. Curiosamente,
não serão muitas as mulheres na vida de Rousseau. Françoise-Louise de Warens, a
quem chamará de mamã toda a vida, preencherá o lugar deixado vago pela mãe
natural, numa confusão de paixões e de amor fraternal dificilmente
destrinçável. Foi o sustento do jovem e intrépido compositor e filósofo durante
largos períodos de autêntica vagabundagem. Com a singela Thérèse Levasseur
casou e teve os filhos que entregou na Roda, mas nas Confissões fica claro que
o coração se lhe atracou noutros portos. Sophie d'Houdetot terá sido o amor falhado para a vida que o filósofo guardou no coração. Não obstante, é impressionante que
apesar da cultura tenha mantido a mulher analfabeta, se tenha escusado à
educação dos filhos contra o que o próprio deixou escrito em relevantes ensaios,
optando por uma solidão e por um recolhimento que poderiam ser confundidos com
egoísmo não fossem os sinais de altruísmo e de generosidade deixados noutros
contextos.
O que parece ser inquestionável é o ódio aos salões que a determinada
altura o assaltou, o gosto pela vagabundagem e o culto da solidão, afastando-o
de amigos como Denis Diderot (n. 1713 – m. 1784), provocando a desconfiança de
homens como Jean le Rond d’Alembert (n. 1717 – m. 1783), altercando com grandes
vultos seus contemporâneos tais como Voltaire (n. 1694 –m. 1778), fomentando
ódios, intrigas e querelas entre as quais a mantida com o barão
Friedrich Melchior von Grimm (n. 1723 – m. 1807) foi a mais acesa e nefasta. Se
o objecto das Confissões é dar a conhecer o íntimo de um homem, elas acabam por
nos dar igualmente uma paisagem dos tempos a partir da crítica de um olhar:
«Estava tão farto de salões, de repuxos, de bosquezinhos, de canteiros, assim
como das mais aborrecidas pessoas que mostram tudo isto; estava tão cansado de
folhetos, de cravos, de «tris», de nozinhos, de tolos ditos de espírito, de
insulsas denguices, de pequenas frioleiras e de grandes ceias, que quando
deitava o rabo do olho para uma simples e pobre moita de espinheiros, uma sebe,
uma granja, um prado; quando, ao atravessar um povoado, aspirava os vapores de
uma boa omeleta com cerefólio; quando ouvia ao longe o rústico refrão da canção
das rendeiras, mandava ao diabo o vermelhão, e os folhos, e o âmbar, e chorando
o jantar caseiro e o vinho da região, de boa vontade teria ido ao focinho do
Sr. Chefe e do Sr. Mordomo que me faziam jantar às horas a que ceio, cear às
horas a que quero dormir; mas sobretudo ao dos Srs. Criados, que com os olhos
devoravam o que tinha no prato, e, sob pena de morrerem de sede, me vendiam o
vinho avariado dos patrões dez vezes mais caro que o melhor que poderia pagar
na taberna» (Vol II. P. 133).
De saúde fragilizada por uma nefrite, incapaz já de voltar a sentir amor, distanciado das elites aquando do sucesso, acusado de
misantropia, perdido num labirinto de correspondência onde o pedantismo, o
arrivismo, a falsidade, a arrogância são sempre fortes ameaças à verdade,
odiado pelas teses defendidas no Discurso Sobre a Desigualdade, tanto quanto a
aristocracia pode odiar a quem a pretenda destronar, perseguido por Jesuítas,
jansenistas, filósofos, Rousseau viu os escritos serem-lhe queimados na
fogueira. O filósofo inglês David Hume (n. 1711 – m. 1776) foi uma amizade
improvável já nos últimos anos de vida. Verdadeiras ou pretensiosas, as
Confissões de Jean-Jacques Rousseau legam-nos uma sabedoria que transcende as memórias de um homem. São, à sua maneira, uma obra de filosofia da qual podemos
reter, nas entrelinhas ou com clarividência metódica, ensinamentos eternos:
«Compreendo como os habitantes das cidades, vendo apenas paredes, ruas, e
crimes, têm pouca fé; mas não compreendo como a não podem ter os camponeses, e
sobretudo os solitários. Como é que a sua alma se não eleva extasiadamente cem
vezes por dia ao autor das maravilhas que os impressionam? Por mim, é sobretudo
quando me levanto, abatido pelas insónias, que, graças a um longo hábito, sou
levado a estas elevações do coração, que não impõem a fadiga de pensar. Mas
para isso é preciso que os meus olhos se impressionem com o arrebatador
espectáculo da natureza. No meu quarto, oro mais raramente e com mais secura: à
vista, porém, de uma bela paisagem, sinto-me comovido, sem saber dizer porquê»
(Vol II. P. 346). Tradução de Fernando Lopes Graça.
1 comentário:
Amigo, são dois volumes?
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