Ensinam-nos na escola que a cultura é o conjunto de
valores materiais e imateriais que caracterizam uma sociedade, mas nada nos
dizem sobre crise de valores.
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As crises não são necessariamente negativas, podem ser
momentos de transformação. Os valores não são estátuas de mármore, nem ADN nem
impressões digitais. Resultam de um complexo encontro das necessidades quotidianas
com a tradição, dos ideais com a prática, da ciência com as artes.
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É um erro confundir cultura com produção artística ou com saber académico. Quando alguém diz “é uma pessoa muito culta” quer geralmente dizer que é uma pessoa com vastos conhecimentos, mas a cultura não resulta
necessariamente de um conhecimento académico lato.
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Um homem solidário, tolerante, capaz de ouvir o outro e
interessando pelo diferente é um homem culto. Um académico intolerante,
arrivista, pedante ou assoberbado, é simplesmente burgesso.
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O intelectual não é necessariamente culto. O artesão não é necessariamente estúpido.
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Gramsci dizia que a cultura é disciplina do eu interior,
domínio da personalidade. Como relacionar esta noção de cultura com toda uma
sociedade?
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Que quer alguém dizer quando fala da cultura árabe? Ou da
cultura americana? Ou da cultura chinesa? Que quer alguém dizer quando se
refere à cultura portuguesa?
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Talvez se refira a meros estereótipos. Acontece que um
dos princípios fundamentais do homem culto é combater os estereótipos. Enquanto
preconceito, todo o estereótipo ou generalização é inimigo da cultura.
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Haverá uma cultura portuguesa?
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Encontramos a resposta a uma questão destas num complexo
cruzamento de saberes que não está ao alcance de cada um. A educação talvez
ajude a passar a mensagem.
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Agustina Bessa-Luís afirma, no Caderno de Significados,
que «A cultura não se elabora, vive de toda uma filtragem moral e sentimental
da sociedade que a produz. Não é obra de empresários nem de mecenas».
Referia-se aos espectáculos. Mas acrescenta, e isto é o mais importante, «a
cultura é feita por obras do pensamento». «A cultura não inspira deveres
numerosos, mas um só dever: a consciência duma pessoal moral».
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A cultura tem pois que ver com a moral, logo com valores,
logo com leis, logo com práticas, logo com a vida.
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A cultura provém da vida, enriquece-a e conserva-a. A
cultura é, sobretudo, um esforço de conservação da vida.
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É por isso que consideramos obras de cultura as obras imorredoiras, as que
perduram no tempo contra a efemeridade desenfreada do consumismo, as que os turistas querem visitar. Uma obra de cultura pode não ser eterna, porque de eterno conhecemos
pouco mais do que o esquecimento. Mas perdura para lá do imaginável.
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É absolutamente catastrófico que se invista tão pouco na
cultura. Os governos perdem mais tempo e gastam mais dinheiro com a indústria
da morte do que com a conservação da vida. Ora secretaria de estado, ora
ministério, a cultura esvai-se nestes tempos supérfluos em pouco mais do que
entretenimento.
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Antes e hoje, pão e circo.
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Cada vez mais, constatamos o quão fundamental é investir
na cultura, na propagação de valores que fundamentem e sustentem a vida, uma
cultura de progresso moral, aberta à diferença, mas, sobretudo, empenhada no
pensamento contra o imediatismo, esforçada na reflexão contra a vertigem
noticiosa e opinativa, uma cultura que resgate para as pessoas o tempo, o ócio,
a pausa, a capacidade até de parar, tão ameaçada que se encontra pela aceleração
dos ritmos de vida, pelo ruído.
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Cultura do espírito crítico, cultura do "espera lá, mas isso é mesmo assim?", cultura da dúvida, do desassossego e da inquietação.
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Já sabemos quão nociva vai sendo esta incapacidade de parar
para reflectir, tomada de assalto que foram as pessoas pela urgência tecnocrática. Não podemos prever,
mas imaginamos, como será daqui a uns anos.
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Autómatos e insensíveis, os homens serão cada vez menos
homens. Serão cada vez mais bestas formatadas. Ser besta é ser inculto, é não
ter cultura.
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Trotski dizia que «A noção de cultura não deve ser
trocada como moeda de uso individual e não se podem definir os progressos da
cultura de uma classe segundo os passaportes proletários destes ou daqueles
inventores ou poetas. A cultura é a soma orgânica de conhecimento e de experiência
que caracteriza toda a sociedade ou, pelo menos, a sua classe dirigente. Abrange
e penetra todos os domínios da criação humana e unifica-os num sistema. As realizações
individuais erguem-se acima desse nível e elevam-no gradualmente».
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Espantoso o sentido que estas palavras continuam a fazer
ainda hoje. Mas o que pensar e sentir quando constatamos a quase total ausência
de cultura em tanta da chamada classe dirigente?
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Pão e circo, antes e hoje.
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Insensíveis aos problemas da cultura, os dirigentes jogam
no tabuleiro da popularidade. Buscam adesão popular muito mais avidamente do
que se preocupam com o incremento e a preservação de valores. Arrastados pela hegemonia
do lúdico, respondem afirmativamente ao “império do efémero” acenando com o
êxtase colectivo da festa.
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Um exemplo catastrófico desta realidade é o estado
degradado do nosso vasto património imobiliário, ou a incúria reiterada com o
património geográfico. Ruína e abandono resultam no filme de terror a que mais
uma vez assistimos este ano com os diversos incêndios disseminados por todo
o país.
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Ainda há quem pense que nada disto tem que ver com
cultura, que é tudo fruto do crime e da doença e da especulação. Mas onde se
desenvolvem melhor todos esses males senão em terrenos onde falta cultura?
2 comentários:
Não é possível que alguém aprenda a pensar a vida no imediatismo das relações em sociedade a qualquer nível nos tempos que vivemos.
Mesmo as tradições de um povo se estão a converter em moeda de troca: compram-se e vendem-se - só os sentem os que a beberam na infância.
Veja-se os eventos das festas nas aldeias promovidos pelos vários canais televisivos...
Desculpe se incomodei com o comentário. Gostei da súmula das observações.
Não incomoda nada e concordo plenamente com o que diz. Grato pelo comentário e pela partilha. Saúde,
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