terça-feira, 26 de junho de 2018

A LIGA DA CHAVE DOURADA


Quando o Super-homem surgiu no primeiro número da revista Action Comics, em 1938, o mundo estava longe de imaginar o poder que os super-heróis iriam exercer sobre toda uma geração de jovens norte-americanos. Três anos depois, os agora famosos Joe Simon e Jack Kirby deram à luz Capitão América. A capa com Hitler a levar uma murraça deste herói made in América tornou-se icónica, dando a entender que as histórias de quadradinhos eram mais do que mero entretenimento adolescente. Elas continham poderosos elementos de propaganda que procuravam demarcar as forças do bem (aliados) das forças do mal (nazis), contribuindo desse modo para uma consciencialização popular de um conflito em emergência. A chamada época de ouro dos super-heróis deu-se, precisamente, durante o período da II Grande Guerra, acabando não só por perder folgo no pós-guerra como por gerar sentimentos contraditórios acerca da influência exercida sobre os leitores mais novos. O paternalismo norte-americano vislumbrou nos comics, tal como na música rock ou noutras manifestações artísticas, a influência do diabo, actuando sobre os criadores de modo a controlar conteúdos e reprimir metáforas. 
   A censura nunca foi um exclusivo dos Estados totalitários. O escritor Michael Chabon (n. 1963), norte-americano de origem judaica, dedicou ao tema 660 de páginas. The Amazing Adventures os Kavalier &  Clay (2000), Prémio Pulitzer de Ficção em 2001, foi publicado em Portugal com o título A Liga da Chave Dourada (Gradiva, Abril de 2003). Coloca em cena Samuel  Louis Klayman e Josef Kavalier, dois primos de origem judaica que tornar-se-ão numa das mais famosas duplas de revistas de quadradinhos. A acção decorre entre 1939, quando Joe Kavalier chega aos EUA vindo da República Checa, e 1954, o ano em que a influência dos super-heróis sobre a juventude começou a ser questionada de um ponto de vista persecutório. Joe deixou para trás a família, carregando consigo a vontade de os libertar das garras nazis. Sammy, espantado com as qualidades do primo para o desenho, abriu-lhe as portas do universo das revistas de quadradinhos. Do encontro entre ambos surgirá o Escapista, super-herói inspirado em Harry Houdini. 
   Chabon oferece-nos um quadro que coloca ao mesmo nível o plano das possibilidades, vinculado ao real, e o dos heróis, assente na necessidade de fuga à realidade. Alicerçada no ilusionismo, a mente juvenil destes criadores oferecia a quem os lesse a possibilidade de escapar. Mas mais que isso, oferecia aos próprios um modo de evasão que era, também, o sonho de poderem estar de algum modo a combater os inimigos que haviam deixado numa Europa distante, mas presente. Joe Kavalier e Sammy Clay têm tudo para se tornar inesquecíveis, num romance que extravasa o domínio da ficção quando nos transporta para o ambiente criativo de uma Nova Iorque efervescente, onde encontraremos Salvador Dalí e respectiva trupe surrealista, o génio de Orson Welles e a influência de Citizen Kane (1941)... Certo que as fórmulas para escapar ao tédio existencial aqui aludidas não negligenciam o oportunismo comercial de uma indústria ávida de fenómenos populares, embora esta dimensão não fira a magia de um encontro essencial de jovens criativos com a sua própria condição. Esta, aliás, encontra na homossexualidade de Sam Clay um processo de descoberta paralelo à libertação operada em Kavalier. O que parece estar em causa é o modo como as personagens escapam a um mundo opressor, a forma como se libertam de correntes que os oprimem e impedem de ser eles próprios. 
   Sam Clay e Joe Kavalier são, eles mesmos, a personagem que engendraram a determinada altura das suas vidas. Eles são o Escapista, ainda que no limite de uma força que lhes permitirá salvarem-se apenas a si próprios. Tudo o mais falha porque tem de falhar, tudo o mais se reduz a «sonhos de fuga, transformação e evasão» traídos por um a magia que é truque, que é ilusão, que é prestidigitação, que é charlatanice. «Josef era uma dessas desafortunadas criaturas que se tornavam escapistas não para provar a superioridade dos seus corpos relativamente às restrições exteriores às leis da física, mas por razões perigosamente metafóricas. Os homens desse tipo sentiam-se prisioneiros de correntes invisíveis emparedados, enclausurados» (p. 49). O mesmo podemos afirmar de Sam Clay, o primo, que a única memória viva que guarda do pai é a da visita a uma sauna, recordada 400 páginas depois de ter sido referida como recalcamento de uma homossexualidade finalmente assumida. Entre tantos heróis mascarados, são estes anti-heróis de rosto descoberto quem mais acaba por sobressair num romance riquíssimo em parábolas inspiradas nas velhas histórias de quadradinhos.

2 comentários:

Pedro Serpa disse...

Gosto tanto desse livro (e, no geral, daquilo que o Chabon escreve. Há dois, sobretudo: o Maps and Legends e, também, o Manhood for amateurs). Pena que esta capa da Gradiva seja tão má, sobretudo se posta lado a lado com a inglesa.

hmbf disse...

Péssima. E o título....