«Não sou uma ardente admiradora de Kafka, pois prefiro o
estilo maravilhado ao pedagógico», declara Agustina. Mas o que quererá dizer quando
distingue o maravilhado do pedagógico? É difícil compreendê-lo. Não poderá um estilo
pedagógico ser igualmente maravilhado? Fará sentido esta distinção, mesmo que
aplicada a um autor tão complexo como Kafka? Para Agustina, o tema obsessivo de
Kafka é «o direito do ínfimo, do pequeno ser desqualificado socialmente».
Citemos: «Kafka é o super-homem no sentido mais estilizado: aquele que não
precisa de ilusões, nem esperanças; basta-lhe o fastio da vida para ser feliz.
Não é desgraçado, longe disso. Aborrece-se em toda a parte, mas, como ele diz,
com infinito espírito: «o mal tem que ser como é, senão ele piora». O mal não é
sentir-se na vida com violenta propensão para coisa melhor; o mal é não saber
isso». Sublinhamos: basta-lhe o fastio da vida para ser feliz. O Kafka de Agustina é feliz, contradiz as leituras de um homem angustiado, submerso no pântano da dúvida. Será a felicidade conciliável com o absurdo? Com a consciência do absurdo? Poderá o homem-absurdo ser feliz?
Kafka imiscui-se nos seus livros, confunde-se com o que
escreve sem se expor por completo, mais claramente num conto como o Covil, como
bem nota A Sibila. Há uma longa citação que podia aclarar isto, quando a autora
portuguesa afasta a ideia batida de uma hostilidade de pai e filho no caso
kafkiano. O pai é imaginário, para Agustina. Metafísico? Agustina rejeita igualmente a ideia de uma obra neurótica e pessimista, preferindo sublinhar o riso, o
humor. Porventura o riso daquele que se defende da tragédia do mundo, digo eu, daquele
que por conhecê-la ou simplesmente pressenti-la, fica inibido, hesita,
não decide: «Ansiava ama, mas fugia do amor, escrevia uma frase e riscava-a logo
a seguir, queria ser judeu e não sabia como; queria viver e não sabia como
viver. Vivia enterrado no lodo burguês até ao pescoço, e não sabia como sair de
lá». Entendemos o fastio. Mas que devemos fazer com a felicidade? A felicidade do homem aborrecido denota altivez, qualidade que dificilmente atribuiríamos a Kafka. Contudo...
Gosto do Kafka que Agustina nos apresenta, aceito-o como
a um irmão mais velho, aprendo com ele a «interpelar o tédio». Mas Kafka era um
génio, apesar de Agustina preferir o estilo maravilhado (?) de Walser. «Kafka
não tem imaginação», diz, o que se nos apresenta como uma leitura
extraordinária. Para o leitor comum, o autor de A Metamorfose é por excelência
o mestre da imaginação. Para a leitora incomum, o «bacilo da indecisão» é o
alicerce trémulo de uma vida «cavada em labirintos». Talvez nenhuma imaginação
o alimente, talvez antes uma leitura cifrada de si mesmo. Como num sonho
acontece por vezes flutuarmos, faltar-nos a vós, fazermos coisas
extraordinárias que psicanaliticamente simbolizam coisas insignificantes. «Não
há em toda a literatura um conhecedor da alma como Kafka».
«A grande ideia de Kafka é a de que o amor está fora de
moda». Associei esta ideia ao suicida Kawabata, depois de ter lido Terra de Neve.
É um livro memorável sobre um amor completamente fora de moda, diria sobre o
amor com aquele sentido trágico que conferia textura e peso à palavra. O símbolo maior do amor na nossa cultura morreu crucificado. É uma imagem terrível, anti-pedagógica. Prefiro a tuberculose de Kafka ao sacrifício de Jesus. O segundo apela-nos ao martírio, é o amor dos casados, dos conformados, é o amor por dever que kant tornou imperativo categórico sem nunca ter amado. O primeiro interroga-nos como ao tédio, a doença que lhe tomou os pulmões e dificulta a respiração é a mesma do romântico, do amor trágico recuperado pelos românticos, sobretudo pelos alemães, mas também pelos ingleses, que entendiam haver entre amor e paixão muitos platões pelo caminho que cabia aos amantes ultrapassar como a Hércules foi exigido que matasse a Hidra.
Associei a Kawabata a ideia de um amor fora de moda. Também
em Kafka a neve, homem que escreveu das mais belas cartas. Agustina não é uma ardente
admiradora de Kafka…
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