Devemos o modo como imaginamos o Velho Oeste à elaboração
de lendas em torno de personalidades como William Frederick Cody, eternizado
Buffalo Bill pelas histórias de cordel, pelo circo que ele próprio erigiu em
1883, com digressão europeia a partir de 1887, e pelo cinema. Cecil B. DeMille
dedicou-lhe The Plainsman (1936), com James Ellison no papel de Buffalo Bill.
Quarenta anos depois, Robert Altman encarregou-se de desconstruir o mito com o
hilariante Buffalo Bill and the Indians, or Sitting Bull’s History Lesson
(1976). Entre um filme e o outro encontramos Buffalo Bill/Aventuras de Buffalo
Bill (1944), de William A. Wellman, tentativa de recriação histórica com maior
preocupação factual.
O actor Joel McCrea ficou com o papel principal, dividido
com a enorme Maureen O’Hara no papel de Louisa Frederici Cody. Bill e Louisa
casaram em 1866, não tendo a história entre ambos sido tão romântica quanto o
filme de Wellman sugere. Mas isso é o menos. Ele representa aqui o
lado selvagem do Oeste, é o aventureiro que respeita os índios e procura
compreendê-los, ela representa o Leste, a civilização e uma noção de progresso
que não está preocupada com a preservação da natureza selvagem nem com nenhum
tipo de tolerância para com os seus habitantes. Antes procura dominá-la/dominá-los
e transformá-la/transformá-los. Têm um filho, que Louisa tenta proteger da
selvajaria deslocando-se para Leste. A criança acabará por morrer com
disenteria, uma doença da civilização.
Grande parte do filme desenvolve-se em torno das guerras
indígenas, recriando com naturalismo os cenários de conflito através de
sequências captadas com a câmara no centro da peleja. Cavalos, índios em fúria,
lanças e disparos parecem vir todos na nossa direcção. A imagem que hoje formamos
daqueles tempos tem neste filme uma matriz indubitável: o forte de madeira no
meio da planície, rodeado de montanhas vigiadas por índios de rosto pintado e com
longos cocares na cabeça, as tranças das mulheres, os tipis montados junto aos
rios, as planícies pejadas de búfalos, os sinais de fumo entre tribos, as
movimentações da cavalaria, a caça indiscriminada aos búfalos patrocinada por
empresários gananciosos do leste norte-americano, tudo isto concorre para um
quadro que fez história e perdura enquanto ilustração de uma certa concepção de
progresso levando de arrasto o mundo natural com seus povos e nações dele inseparáveis,
por se sentirem parte integrante desse meio natural a que os colonos chamavam selva.
William A. Wellman, a quem devemos alguns westerns sobre
temas clássicos (The Ox-Bow Incident, de 1943, era sobre os linchamentos
públicos) e metafísicos (Yellow Sky, de 1948, é o melhor de todos eles), parece
inclinar-se aqui para as clivagens fundadoras da América. Anthony Quinn, no
papel de Chefe Yellow Hand, é outra das personagens preponderantes no conflito.
Muitas sequências assumem uma postura algo condescendente para com os métodos
índios, levando-nos a crer que os actos bárbaros e guerreiros por eles
praticados surgiram sempre na sequência de aproximações traiçoeiras do homem
branco. Embora não possamos afirmar que exista no filme uma qualquer
predisposição para a sentença, a verdade é que Wellman denota especial
afecto pelos mais fracos da História.
No final, ainda que sobre (de sobrar) o agradecimento a Buffalo Bill
enquanto figura inspiradora de uma espécie de confluência multiétnica, fica-nos
na retina o processo civilizacional operado sobre o próprio homem das
planícies. Bill não é índio, mas é como se fosse. Logo no início ele não encaixa
na formalidade dos comportamentos entre os de leste, que o convidam para
jantar. Ao longo do filme, nunca parece encaixar nas atitudes, nas opções, nas
decisões de um exército ao serviço de interesses económicos devastadores. Mas
quando chega a altura de escolher um lado, ele escolhe o lado Bill. Não escolhe
o lado Buffalo. Percebemos os efeitos da opção quando o observamos a deambular nas
ruas da cidade, quando depois de ter sido elevado a herói cai em desgraça e
desacreditado por dizer umas verdades acerca do tratamento dado aos índios pelo
homem branco. A decadência e a ruína deste homem deslocam-no para o centro da
arena. Com o circo montado, recriando para inglês ver as aventuras vividas no
Oeste Selvagem, ele transforma-se numa anedota de si mesmo.
«Aprende a
tornar-te naquilo que és», aconselhava Píndaro. Buffalo Bill aprendeu-o da pior
maneira, tornando-se palhaço com rosto de lenda.
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