sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

BUFFALO BILL (1944)



  Devemos o modo como imaginamos o Velho Oeste à elaboração de lendas em torno de personalidades como William Frederick Cody, eternizado Buffalo Bill pelas histórias de cordel, pelo circo que ele próprio erigiu em 1883, com digressão europeia a partir de 1887, e pelo cinema. Cecil B. DeMille dedicou-lhe The Plainsman (1936), com James Ellison no papel de Buffalo Bill. Quarenta anos depois, Robert Altman encarregou-se de desconstruir o mito com o hilariante Buffalo Bill and the Indians, or Sitting Bull’s History Lesson (1976). Entre um filme e o outro encontramos Buffalo Bill/Aventuras de Buffalo Bill (1944), de William A. Wellman, tentativa de recriação histórica com maior preocupação factual.
   O actor Joel McCrea ficou com o papel principal, dividido com a enorme Maureen O’Hara no papel de Louisa Frederici Cody. Bill e Louisa casaram em 1866, não tendo a história entre ambos sido tão romântica quanto o filme de Wellman sugere. Mas isso é o menos. Ele representa aqui o lado selvagem do Oeste, é o aventureiro que respeita os índios e procura compreendê-los, ela representa o Leste, a civilização e uma noção de progresso que não está preocupada com a preservação da natureza selvagem nem com nenhum tipo de tolerância para com os seus habitantes. Antes procura dominá-la/dominá-los e transformá-la/transformá-los. Têm um filho, que Louisa tenta proteger da selvajaria deslocando-se para Leste. A criança acabará por morrer com disenteria, uma doença da civilização.
   Grande parte do filme desenvolve-se em torno das guerras indígenas, recriando com naturalismo os cenários de conflito através de sequências captadas com a câmara no centro da peleja. Cavalos, índios em fúria, lanças e disparos parecem vir todos na nossa direcção. A imagem que hoje formamos daqueles tempos tem neste filme uma matriz indubitável: o forte de madeira no meio da planície, rodeado de montanhas vigiadas por índios de rosto pintado e com longos cocares na cabeça, as tranças das mulheres, os tipis montados junto aos rios, as planícies pejadas de búfalos, os sinais de fumo entre tribos, as movimentações da cavalaria, a caça indiscriminada aos búfalos patrocinada por empresários gananciosos do leste norte-americano, tudo isto concorre para um quadro que fez história e perdura enquanto ilustração de uma certa concepção de progresso levando de arrasto o mundo natural com seus povos e nações dele inseparáveis, por se sentirem parte integrante desse meio natural a que os colonos chamavam selva.
  William A. Wellman, a quem devemos alguns westerns sobre temas clássicos (The Ox-Bow Incident, de 1943, era sobre os linchamentos públicos) e metafísicos (Yellow Sky, de 1948, é o melhor de todos eles), parece inclinar-se aqui para as clivagens fundadoras da América. Anthony Quinn, no papel de Chefe Yellow Hand, é outra das personagens preponderantes no conflito. Muitas sequências assumem uma postura algo condescendente para com os métodos índios, levando-nos a crer que os actos bárbaros e guerreiros por eles praticados surgiram sempre na sequência de aproximações traiçoeiras do homem branco. Embora não possamos afirmar que exista no filme uma qualquer predisposição para a sentença, a verdade é que Wellman denota especial afecto pelos mais fracos da História.
   No final, ainda que sobre (de sobrar) o agradecimento a Buffalo Bill enquanto figura inspiradora de uma espécie de confluência multiétnica, fica-nos na retina o processo civilizacional operado sobre o próprio homem das planícies. Bill não é índio, mas é como se fosse. Logo no início ele não encaixa na formalidade dos comportamentos entre os de leste, que o convidam para jantar. Ao longo do filme, nunca parece encaixar nas atitudes, nas opções, nas decisões de um exército ao serviço de interesses económicos devastadores. Mas quando chega a altura de escolher um lado, ele escolhe o lado Bill. Não escolhe o lado Buffalo. Percebemos os efeitos da opção quando o observamos a deambular nas ruas da cidade, quando depois de ter sido elevado a herói cai em desgraça e desacreditado por dizer umas verdades acerca do tratamento dado aos índios pelo homem branco. A decadência e a ruína deste homem deslocam-no para o centro da arena. Com o circo montado, recriando para inglês ver as aventuras vividas no Oeste Selvagem, ele transforma-se numa anedota de si mesmo. 
   «Aprende a tornar-te naquilo que és», aconselhava Píndaro. Buffalo Bill aprendeu-o da pior maneira, tornando-se palhaço com rosto de lenda.

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