quarta-feira, 3 de abril de 2019

CIDADE PROIBIDA


   Talvez seja mais lógico supor que os extraterrestres cheguem de fora, por isso lhes chamamos “extra-terrestres”. Ouvimos por vezes dizer: “se um marciano aterrasse agora aqui”… Mas e se os marcianos fossem gerados pela Terra? E se a própria Terra tivesse capacidade de gerar os seus anticorpos? E se os extraterrestres fossem terráqueos? Pode parecer ilógico, mas apenas porque os limites da linguagem diferem das fronteiras do pensamento. E o pensamento fica sempre muito aquém da realidade. Se não, vejamos: no ano de 2019, o sultão do Brunei, país membro da ONU, aplica a Sharia a adúlteros e homossexuais, o que prevê chibatadas a doer e apedrejamento até à morte; de seu nome Hassanal (ó santa ironia), o tal sultão é um dos homens mais ricos do universo, proprietário de vários hotéis luxuosíssimos espalhados pelo “mundo civilizado”, nos quartos dos quais, presumo, algum adultério e alguma homossexualidade serão levados à prática. Algures em viajem por Israel, o troglodita que os brasileiros elegeram para os representar, depois de se rebelar contra um folião a meter o dedo no cu, foi apregoar ao muro das lamentações que o nazismo consistiu num movimento de esquerda. Em si mesma, a afirmação não é tão grave quanto possa parecer. Afinal quem leva Bolsonaro a sério? Só mesmo os brasileiros e os amigos-de-seu-amigo (alô Trump, alô Netanyahu) que pretendam servir-se das riquezas que os brasileiros têm para esbanjar. Por cá, andamos entaramelados com as ligações familiares no governo. Este é o bom governo de Portugal, advertiu Tomás Pinto Brandão no séc. XVIII. Salvo diferenças de pormenor, continua tudo na mesma.
   Comovidos com o resultado da passagem do ciclone Idai pela Beira, pegamos num livro e procuramos distrair-nos do mundo. Mas o mundo persegue-nos, e o livro lá está a meter-nos ainda mais dentro do mundo. São diversas as contingências que tornam pertinente a leitura de Cidade Proibida (QuidNovi, Maio de 2007), romance de Eduardo Pitta (n. 1949). A personagem principal é um menino de bem, homossexual, cuja família tem ligações à Beira. O inglês com quem vive, marcado por alguns preconceitos de classe (chamemos-lhe assim), fará o seu brexit, depois de concluir, com frieza e racionalidade, que nada tem que ver com a hipocrisia reinante no mundo conservador tuga que lhe exige certo esforço de movimentos: «Rupert ainda não tinha ouvido ninguém comentar os temas do dia, assuntos que mobilizavam as pessoas como ele e faziam manchete nos jornais. À sua volta todos pareciam imunes ao quotidiano. A selva das estradas? Trapalhadas da Justiça? Abuso de menores? Custo de vida? Ameaças da Al Qaeda? Ocupação do Iraque? Bagatelas. O tema eram eles. E gente como eles. Contava o nome. E depois o cargo, sua visibilidade e solidez. Entre os muito íntimos, a revelação do acesso iminente (pressentido ou real) a um patamar mais alto, de preferência transnacional» (pp. 64-65).
   O despudor na descrição de cenas sexuais atiraria o livro para a fogueira dos padres na Polónia, sendo certo que o próprio Hassanal do Brunei não perdoaria a leitura sem pelo menos trinta calhaus arremessados contra a cabeça do leitor. Ler um livro assim tão “naturalisticamente” escrito é como fazer sexo com as personagens, algo que não merece perdão nem no Brunei nem, presumo, na Polónia dos padres. Pitta descreve tudo como se andasse por dentro, desmontando com cáustica ironia a fachada luminosa e luxuosa de uma família por detrás da qual se encobre um cenário de ruínas. Descompensadas emocionalmente, intimamente, estas personagens exprimem o desastre da mentira que as corrói. Aparte paixões e ligações amorosas, há uma sequência que dá bem conta do clima. Nora, a matriarca, administradora de uma importante fundação, reúne com o presidente à mesa do Bem Disposto. Este tenta influenciar, isto é, pressionar a cunha, a possível admissão de uma afilhada do engenheiro António, chefe de governo com o qual a Fundação mantém boas relações. Nora escuta, «Porém, antes de desligar, lembrou que a Fundação não era depósito de filhos-família». O resto é fácil de imaginar:

   «Em menos de vinte e quatro horas soube que o engenheiro ficara incomodado.
   Ela não se importava. Tinha bem presente o que sucedera em 2000, logo a seguir à presidência portuguesa da União, quando magotes de meninos e meninas, de facto mais meninas do que meninos, contratados a termo certo para acudir ao forcing daquele semestre, foram, uma vez libertos dos ministérios, expeditamente encaminhados para representações diplomáticas, fundações privadas, institutos e empresas públicas, holdings com participação do Estado, importantes firmas de advocacia, etc. Alguns até foram parar a Bruxelas. Um deles, recém-licenciado da Católica, passara pela Fundação. Não obstante o assédio do INA, preferiu a REPER. A pouca idade não o fez hesitar entre o palácio dos Marqueses de Pombal e o cosmopolitismo da Avenue Cortenbergh. O rapaz era realmente brilhante, Oeiras não estava na sua linha de tiro. Na Fundação sentiram a falta dele. Antes da partida Nora tinha feito uma proposta irrecusável. Ele declinou com elegância. Não era dinheiro o que lhe interessava. Era poder. Podia esperar desde que estivesse no sítio certo. Mas como ele havia poucos. A grande maioria distinguia-se pela mediocridade mais rasteira. Vaguíssimas licenciaturas obtidas quase sempre em universidades de segunda linha, mestrados esotéricos, um que outro doutoramento a tender para o virtual. Nora guardava cópia de um C.V. que referia licenciatura em Relações Internacionais, seguida de mestrado. Guardou-o por causa do título da dissertação: A apropriação desapropriante do português no espaço dos PALOP. Ascensão e queda do mito colonial e afirmação das identidades nacionais. Era obra!»

   Disse fácil de imaginar? Talvez devesse ter dito que bastará estar a tento, observar com cautelosa distância as vias onde circulam os chacais do poder. O que não falta no quotidiano português é matéria onde buscar exemplo. Cidade Proibida está publicado na Planeta de 2014.

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