Desde a publicação da antologia “Sud-Express” (Relógio D’Água
Editores, 1993) que a poesia de expressão francesa não tem merecido especial
atenção por cá, sobretudo se compararmos com a de autores anglófonos. Poderão
existir várias razões que expliquem o facto, desde a hegemonia da língua
inglesa no mundo actual à vitalidade da poesia em países como Inglaterra e
Estados Unidos da América. Livros como “Figuras do Muito Obscuro” (Cavalo de
Ferro, 2005), do belga Yves Namur (n. 1952), e o mais recente “Alguma coisa
negro” (Tinta-da-China, 2017), de Jacques Roubaud (n. 1932), são excepções que
confirmam a regra. Acrescente-se agora este “A Árvore do Desaparecimento” (Editora
Exclamação, Junho de 2019), de Jean Portante (n. 1950).
Nascido no Luxemburgo,
Jean Portante é autor de vasta obra distribuída por vários géneros. Além de
poesia, publicou contos, teatro, romance, uma biografia de Allen Ginsberg. Com “L’Etrange
langue” venceu o Prémio Mallarmé em 2003, tendo-lhe sido atribuído no mesmo ano
o relevante Grand Prix d’Automne de la Société des Gens de Lettres. Estreou-se
na poesia, em 1983, com o livro “Feu et boue”. “L’arbre de la disparition” data
de 2004, chegando a Portugal com tradução de Rosa Alice Branco.
No prefácio
assinado por Lionel Ray (n. 1935), também ele poeta e ensaísta francês,
afirma-se que «A arte de Jean Portante relembra a dos poetas barrocos, é um
teatro de surpresas da linguagem, uma fusão alegre de imagens, de minúsculos
enigmas e de hipérboles». Poderá não ser a porta de entrada ideal para uma
comunidade de leitores aparentemente mais inclinada para linguagens poéticas depuradas,
porventura narrativas e semanticamente despojadas. Mas aquilo que Lionel Ray
aponta como sendo um “teatro de surpresas da linguagem” talvez esteja mais
relacionado com os jogos formais a que Portante submete os poemas do que com
excessivos e escusados ornamentos. De excessivo, este livro denota apenas uma
proliferação de epígrafes no primeiro de cinco conjuntos que entendemos
enquanto vinculação a um labor poético intimamente ligado ao ofício da
tradução. Entre os inúmeros citados encontramos, a título de exemplo, o
argentino Juan Gelman (n. 1930 – m. 2014), de quem Jean Portante traduziu
vários livros.
Nas cinco partes de "A Árvore do Desaparecimento" a subversão formal acompanha a
própria organização do discurso, contribuindo para que os cinco conjuntos se
diferenciem de um ponto de vista plástico embora se aproximem nos temas
essenciais. Logo no primeiro conjunto, intitulado “o carvão desce (a cinza)”,
percebemos que a imagem associada à combustão representa o tempo e suas
inevitáveis consequências, sendo que em todos os poemas desse conjunto o último
verso surge em maiúsculas como que reforçando uma ideia de movimento na
direcção do fim. Noite e dia, negro e branco, norte e sul, são coordenadas de
uma interrogação que no conjunto seguinte, “o machado do porquê (das palavras)”,
coloca a infância no centro das atenções. Neste caso, os poemas ligam-se
através de espaços silenciosos abertos entre páginas. Mais uma vez, a sensação
de movimento acompanha a leitura. Agora com pausas, elipses, interrupções e enxertos
de imagens marcadas pela perda e pela ausência: «é o meu pai que durante a
noite / envia lá de cima nuvens inteiras. / de manhã a minha mãe apanha os
sinais» (p. 60).
Ainda que disfarçada, a biografia não desaparece por completo.
No conjunto “rua do norte (fala)” a memória exerce uma influência decisiva a
partir de uma reflexão acerca do eu, numa espécie de dramatização ontológica que
procura responder à questão essencial que é o mistério de se estar entre
nascimento e morte. A árvore é, pois, uma imagem recorrente, porventura enquanto
símbolo de uma genealogia que o poema questiona: «O meu pai está / nas paredes
e eu estou / em quê?» (p. 93) Outra presença forte é a do cervo, omnipresente
no conjunto “o veado da manhã (uma outra língua)”. Uma pesquisa rápida
permite-nos concluir que o cervo surge diversas vezes na obra de Jean Portante,
imagem de uma “força natural indómita” com características metonímicas: «olha
para o cervo. ele traz o tempo à / cabeça» (p. 110). Tal como as raízes da
árvore, os cornos do veado transportam-nos para essa ideia de tempo que define
este “A Árvore do Desaparecimento”.
Este livro termina com um curioso exercício
intitulado “a história acabou (soneto desaparecendo)”, onde novamente o
movimento que tende para o fim, o desaparecimento, o esquecimento, o
apagamento, o vazio, o branco, é redesenhado a partir de um soneto que se vai
consumindo a si mesmo, como o carvão inicial transformando-se em cinza. Deste
modo, os 14 versos iniciais do soneto vão-se perdendo até ficarmos apenas com
um título: MEMOS TUDO. Este tudo é nada, é a morte, é o fim:
SE EU TORNAR A NASCER NÃO
digo nada a ninguém.
faço como os que regressam duma
longa viagem. o que dará um laço
entre o sul e o norte. viverei
na cozinha deste laço. com uma
faca na mão. outra faca na
outra. a mão norte contra a mão
sul. é uma questão de paciência.
a água fervilha e verte o regresso nos
olhos. e também o verte
nas paredes.
se eu tornar a
nascer só comerei o regresso
depois de o ter deixado ferver.
Jean Portante, in A Árvore do Desaparecimento, trad. Rosa
Alice Branco, Editora Exclamação, Junho de 2019, p. 96.
Sem comentários:
Enviar um comentário