terça-feira, 23 de julho de 2019

A ÁRVORE DO DESAPARECIMENTO



   Desde a publicação da antologia “Sud-Express” (Relógio D’Água Editores, 1993) que a poesia de expressão francesa não tem merecido especial atenção por cá, sobretudo se compararmos com a de autores anglófonos. Poderão existir várias razões que expliquem o facto, desde a hegemonia da língua inglesa no mundo actual à vitalidade da poesia em países como Inglaterra e Estados Unidos da América. Livros como “Figuras do Muito Obscuro” (Cavalo de Ferro, 2005), do belga Yves Namur (n. 1952), e o mais recente “Alguma coisa negro” (Tinta-da-China, 2017), de Jacques Roubaud (n. 1932), são excepções que confirmam a regra. Acrescente-se agora este “A Árvore do Desaparecimento” (Editora Exclamação, Junho de 2019), de Jean Portante (n. 1950).
   Nascido no Luxemburgo, Jean Portante é autor de vasta obra distribuída por vários géneros. Além de poesia, publicou contos, teatro, romance, uma biografia de Allen Ginsberg. Com “L’Etrange langue” venceu o Prémio Mallarmé em 2003, tendo-lhe sido atribuído no mesmo ano o relevante Grand Prix d’Automne de la Société des Gens de Lettres. Estreou-se na poesia, em 1983, com o livro “Feu et boue”. “L’arbre de la disparition” data de 2004, chegando a Portugal com tradução de Rosa Alice Branco. 
   No prefácio assinado por Lionel Ray (n. 1935), também ele poeta e ensaísta francês, afirma-se que «A arte de Jean Portante relembra a dos poetas barrocos, é um teatro de surpresas da linguagem, uma fusão alegre de imagens, de minúsculos enigmas e de hipérboles». Poderá não ser a porta de entrada ideal para uma comunidade de leitores aparentemente mais inclinada para linguagens poéticas depuradas, porventura narrativas e semanticamente despojadas. Mas aquilo que Lionel Ray aponta como sendo um “teatro de surpresas da linguagem” talvez esteja mais relacionado com os jogos formais a que Portante submete os poemas do que com excessivos e escusados ornamentos. De excessivo, este livro denota apenas uma proliferação de epígrafes no primeiro de cinco conjuntos que entendemos enquanto vinculação a um labor poético intimamente ligado ao ofício da tradução. Entre os inúmeros citados encontramos, a título de exemplo, o argentino Juan Gelman (n. 1930 – m. 2014), de quem Jean Portante traduziu vários livros. 
   Nas cinco partes de "A Árvore do Desaparecimento" a subversão formal acompanha a própria organização do discurso, contribuindo para que os cinco conjuntos se diferenciem de um ponto de vista plástico embora se aproximem nos temas essenciais. Logo no primeiro conjunto, intitulado “o carvão desce (a cinza)”, percebemos que a imagem associada à combustão representa o tempo e suas inevitáveis consequências, sendo que em todos os poemas desse conjunto o último verso surge em maiúsculas como que reforçando uma ideia de movimento na direcção do fim. Noite e dia, negro e branco, norte e sul, são coordenadas de uma interrogação que no conjunto seguinte, “o machado do porquê (das palavras)”, coloca a infância no centro das atenções. Neste caso, os poemas ligam-se através de espaços silenciosos abertos entre páginas. Mais uma vez, a sensação de movimento acompanha a leitura. Agora com pausas, elipses, interrupções e enxertos de imagens marcadas pela perda e pela ausência: «é o meu pai que durante a noite / envia lá de cima nuvens inteiras. / de manhã a minha mãe apanha os sinais» (p. 60). 
   Ainda que disfarçada, a biografia não desaparece por completo. No conjunto “rua do norte (fala)” a memória exerce uma influência decisiva a partir de uma reflexão acerca do eu, numa espécie de dramatização ontológica que procura responder à questão essencial que é o mistério de se estar entre nascimento e morte. A árvore é, pois, uma imagem recorrente, porventura enquanto símbolo de uma genealogia que o poema questiona: «O meu pai está / nas paredes e eu estou / em quê?» (p. 93) Outra presença forte é a do cervo, omnipresente no conjunto “o veado da manhã (uma outra língua)”. Uma pesquisa rápida permite-nos concluir que o cervo surge diversas vezes na obra de Jean Portante, imagem de uma “força natural indómita” com características metonímicas: «olha para o cervo. ele traz o tempo à / cabeça» (p. 110). Tal como as raízes da árvore, os cornos do veado transportam-nos para essa ideia de tempo que define este “A Árvore do Desaparecimento”. 
   Este livro termina com um curioso exercício intitulado “a história acabou (soneto desaparecendo)”, onde novamente o movimento que tende para o fim, o desaparecimento, o esquecimento, o apagamento, o vazio, o branco, é redesenhado a partir de um soneto que se vai consumindo a si mesmo, como o carvão inicial transformando-se em cinza. Deste modo, os 14 versos iniciais do soneto vão-se perdendo até ficarmos apenas com um título: MEMOS TUDO. Este tudo é nada, é a morte, é o fim:

SE EU TORNAR A NASCER NÃO

digo nada a ninguém.
faço como os que regressam duma
longa viagem. o que dará um laço
entre o sul e o norte. viverei

na cozinha deste laço. com uma
faca na mão. outra faca na
outra. a mão norte contra a mão
sul. é uma questão de paciência.

a água fervilha e verte o regresso nos
olhos. e também o verte
nas paredes.

se eu tornar a
nascer só comerei o regresso
depois de o ter deixado ferver.

Jean Portante, in A Árvore do Desaparecimento, trad. Rosa Alice Branco, Editora Exclamação, Junho de 2019, p. 96.

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