quarta-feira, 24 de julho de 2019

O UNIVERSO & OUTRAS FICÇÕES



   Num ensaio intitulado “Quando a ficção vive na ficção” (1939), o escritor argentino Jorge Luis Borges (n. 1899 – m. 1986) oferece ao leitor vários exemplos do que ele considera ser o problema do infinito na literatura. Dentro de uma história podem coexistir várias histórias, como um espelho voltado para um espelho ou um sonho onde alguém sonha: «Ao processo pictórico de inserir um quadro num quadro, corresponde nas letras o de interpolar uma ficção noutra ficção». Estes “labirintos verbais”, afirma Borges, encontram no romance “At Swim-Two-Birds”, de Flann O’Brien, um exemplo maior. Foi publicado entre nós pela Cavalo de Ferro, com o título “Uma caneca de tinta irlandesa” (Março de 2013), e conta a história de um estudante de Dublin que tenta escrever um romance sobre um taberneiro que, por sua vez, escreve um romance sobre os seus clientes, os quais também escrevem romances onde figuram o taberneiro e o tal estudante…
   Coincidentemente, ou nem por isso, “O Universo & Outras Ficções” (Companhia das Ilhas, Abril de 2019), de Carlos Alberto Machado (n. 1954), abre justamente com uma viagem a Dublin e o encontro inesperado com Pierre Menard, personagem de Jorge Luis Borges. Menard oferece ao narrador «os últimos textos escritos por Jorge Luis Borges”, um conjunto de papéis dactilografados com o título “O Universo & Outras Ficções”. Estamos no Atrium de um labirinto tipicamente borgesiano, sendo clara nos contos seguintes a intenção não só de fazer com que a realidade pareça irreal, mas também a de gerar uma enorme suspeita sobre o que se lê. Arrumados em três conjuntos, estes contos exploram essa noção de realidade na ficção situando-se num limbo que gera espanto e desconfiança. Tudo neles parece verosímil, sendo que nada neles parece autêntico.
   Se dermos um salto para a última ficção, a qual oferece título ao conjunto, torna-se evidente o propósito. Um académico presta homenagem ao seu tio Alexandrino Fonseca, o qual empreendeu em vida um projecto interminável que o nosso académico classifica de “Romance-Universo”. E que projecto foi esse? Uma gigantesca colecção de objectos e documentos, registos e arquivos, sobre as pessoas que conheceu ao longo de mais de trinta anos de vida profissional. Milhares de caixas com informações que se cruzam entre si, numa teia interminável de relações labirínticas. O relato coloca-nos perante uma situação que não é absolutamente desprovida de veracidade, sendo possível encontrar na história da humanidade factos que a tornariam bastante plausível. Mas a dúvida que tal situação nos suscita é sobre a própria natureza da ficção. Se o que aqueles arquivos continham eram factos, o projecto de lhes conferir uma organização é já “mise-en-scène”. Logo, estamos no domínio da ficção.
   No segundo conjunto de histórias deste livro empreende-se uma viagem por lugares e culturas, povos e civilizações, que nos transporta para dimensões imaginárias, deixando-nos de igual modo suspensos quanto à plausibilidade dos factos narrados. A arquitectura é exótica, mas o jogo mantido com a ideia de extinção leva-nos a supor um registo antropológico que, não sendo factual, simula eficazmente a realidade: «Hoje, Hasrai sonha com os ur, de que tanto ouviu falar. Num tempo já perdido no tempo, os güonerhi tinham a capacidade de, perdido um objecto, encontrar não apenas esse objecto mas também um outro, um hrönir, um objecto mais ajustado à expectativa dos que o procuravam contudo, quase sempre de forma desgraciosa e de maior tamanho. Mas, para a imaginação de Hasrai, nada como os ur objectos segundos produzidos por sugestão, os objectos deduzidos pela esperança. Hasrai sonha, pois» (p. 77). Sonhando ou não, parece-me que podemos tomar a experiência de Hasrai como um ensaio acerca da ficção. Sem prejuízo da realidade, obviamente.