Num ensaio intitulado “Quando a ficção vive na ficção”
(1939), o escritor argentino Jorge Luis Borges (n. 1899 – m. 1986) oferece ao
leitor vários exemplos do que ele considera ser o problema do infinito na
literatura. Dentro de uma história podem coexistir várias histórias, como um
espelho voltado para um espelho ou um sonho onde alguém sonha: «Ao processo
pictórico de inserir um quadro num quadro, corresponde nas letras o de
interpolar uma ficção noutra ficção». Estes “labirintos verbais”, afirma Borges,
encontram no romance “At Swim-Two-Birds”, de Flann O’Brien, um exemplo maior.
Foi publicado entre nós pela Cavalo de Ferro, com o título “Uma caneca de tinta
irlandesa” (Março de 2013), e conta a história de um estudante de Dublin que
tenta escrever um romance sobre um taberneiro que, por sua vez, escreve um
romance sobre os seus clientes, os quais também escrevem romances onde figuram
o taberneiro e o tal estudante…
Coincidentemente, ou nem por isso, “O Universo &
Outras Ficções” (Companhia das Ilhas, Abril de 2019), de Carlos Alberto Machado
(n. 1954), abre justamente com uma viagem a Dublin e o encontro inesperado com
Pierre Menard, personagem de Jorge Luis Borges. Menard oferece ao narrador «os
últimos textos escritos por Jorge Luis Borges”, um conjunto de papéis
dactilografados com o título “O Universo & Outras Ficções”. Estamos no
Atrium de um labirinto tipicamente borgesiano, sendo clara nos contos seguintes
a intenção não só de fazer com que a realidade pareça irreal, mas também a de
gerar uma enorme suspeita sobre o que se lê. Arrumados em três conjuntos, estes
contos exploram essa noção de realidade na ficção situando-se num limbo que
gera espanto e desconfiança. Tudo neles parece verosímil, sendo que nada neles
parece autêntico.
Se dermos um salto para a última ficção, a qual oferece
título ao conjunto, torna-se evidente o propósito. Um académico presta homenagem ao seu tio
Alexandrino Fonseca, o qual empreendeu em vida um projecto interminável que o nosso
académico classifica de “Romance-Universo”. E que projecto foi esse? Uma
gigantesca colecção de objectos e documentos, registos e arquivos, sobre as
pessoas que conheceu ao longo de mais de trinta anos de vida profissional. Milhares
de caixas com informações que se cruzam entre si, numa teia interminável de relações labirínticas. O relato coloca-nos perante uma situação que não é absolutamente desprovida de veracidade,
sendo possível encontrar na história da humanidade factos que a tornariam
bastante plausível. Mas a dúvida que tal situação nos suscita é sobre a própria
natureza da ficção. Se o que aqueles arquivos continham eram factos, o projecto
de lhes conferir uma organização é já “mise-en-scène”. Logo, estamos no domínio
da ficção.
No segundo conjunto de histórias deste livro empreende-se
uma viagem por lugares e culturas, povos e civilizações, que nos transporta
para dimensões imaginárias, deixando-nos de igual modo suspensos quanto à
plausibilidade dos factos narrados. A arquitectura é exótica, mas o jogo
mantido com a ideia de extinção leva-nos a supor um registo antropológico que,
não sendo factual, simula eficazmente a realidade: «Hoje, Hasrai sonha com os
ur, de que tanto ouviu falar. Num tempo já perdido no tempo, os güonerhi tinham
a capacidade de, perdido um objecto, encontrar não apenas esse objecto mas
também um outro, um hrönir, um objecto mais ajustado à expectativa dos que o
procuravam —
contudo, quase sempre de forma desgraciosa e de maior tamanho. Mas, para a
imaginação de Hasrai, nada como os ur — objectos segundos produzidos por
sugestão, os objectos deduzidos pela esperança. Hasrai sonha, pois» (p. 77).
Sonhando ou não, parece-me que podemos tomar a experiência de Hasrai como um
ensaio acerca da ficção. Sem prejuízo da realidade, obviamente.
1 comentário:
grande post este.
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