Agora que regressados desse lugar onde homem e mulher
andam nus sem sentirem vergonha por isso, voltamos a tapar o corpo com angústia
e sentido do dever, deixai-me contar-vos de vozes exiladas nas suas próprias
gargantas. Se por acaso já vos chegou aos ouvidos o nome Afeganistão, por certo
não terá sido pelas melhores razões. Só há 100 anos foi aquele território
reconhecido como estado soberano. Os pachtuns são aí o
maior grupo étnico, com ele se confundindo até à raiz de um nome: pachtum
e afegão são sinónimos.
Uma das tradições mais antigas desta etnia, como de
resto sabeis ainda hoje muito viva em toda a cultura árabe, é a literatura
oral. Não é difícil encontrar num país árabe, até nas praças mais assediadas pelos turistas, grupos de gente a ouvir histórias contadas por anciões, composições mais ou
menos improvisadas que, na poesia, adquirem a forma de canto. Ao
contrário do texto moralizante, arreigado à religião, estas improvisações
vocais destacam-se pela liberdade do discurso, exaltando o amor e a paixão, a
música e o vinho, tudo quanto liga o homem à terra inquietando-o como inquietas
ficam as plantas à passagem do vento.
A natureza surge assim celebrada, os sentimentos
profundos e os anseios manifestam-se sem peias. Ao landay, forma poética
breve como o haiku japonês, acrescenta-se ainda a característica muito rara de ser praticado por mulheres. Em “A Voz Secreta das Mulheres Afegãs” (Cavalo de
Ferro, Fevereiro de 2005), recolha assinada por Sayd Bahodine
Majrouh (1928-1988), poeta e filósofo afegão, procurou-se fixar para
conhecimento universal alguma da magia produzida pelos landay. Imaginamos que ao texto algo escapará que o som das vozes sublimaria,
mas devemos sentir-nos gratos por pelo menos assim podermos aceder a estes
poemas que nos chegam «como um grito do coração, como um relâmpago, como uma
chama».
Ficai sabendo dessas mulheres que cantando-se a si mesmas revelam sua precária condição, mulheres oprimidas por um sufoco que o canto
liberta, por uma servidão que a poesia subleva, por uma humilhação que a
palavra rebela. O suicídio e o canto, como sublinha Sayd Bahodine Majrouh na
introdução a este livro que a poeta Ana Hatherly mudou para a nossa língua,
são o testemunho de um protesto escondido da mulher pashtun. E então
perceberemos com outra clareza a intensidade da voz clara:
Olhai do esposo a horrível tirania:
Bate-me e proíbe-me de chorar.
Para assim compreendermos que por detrás do poema esconde-se um poder inextinguível que pouco ou nada tem que ver com escola e
técnica, mas tudo deve ao sentir da vida que descobre caminhos entre a treva
para nos levar a um modo de ver que é modo de ser:
Adormece em meus olhos
A insónia das minhas noites reduziu-me a pó
Só então, minhas filhas, o amor deixará de ser a posse que escraviza para se
soltar em dúvida social e desafogada paixão. A mulher submissa redescobre-se no
desejo, recusa a condição de objecto e insurge-se contra o martírio. E se nada disto é tão simples quanto o coração
deseja, deixai-vos impressionar pela respiração do canto que lamenta «não
ter vivido suficientemente, não ter provado a sua beleza, a sua juventude e as
alegrias do amor»:
Vem e sê uma flor sobre o meu peito
Para que eu possa, cada manhã, refrescar-te com o meu
riso
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