segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

UM POEMA DE LEONARDO FRÓES


A terra do mim

na cisma da roça o mim dilata
observando tão de perto a menor das coisas
cujas folhas curativas se abrem
rabiscando no dedo um grão humilde

as bananeiras parecem rir desse medo
que a pouco tem de ser controlado
reduzido e repelido para o mim perceber
que nada nunca o separa do comum das sombras

assim como esse cacho cortado
por mim terá de ser dividido,
as folhas do mistério apenas brincam de imagem
armando para mim seu quebra-corpo selvagem

para mim e por mim a natureza-beleza
tece diariamente seus cipós e enredos
permitindo que a entrada no mato
seja uma doação voadora como a dos insectos

a lama a cama a fama o cocô e a casca
tudo participa dessa sensação-liquidez
que leva realmente o coração pela ponte
mas quando eu olho mais de perto só encontro um sorriso

pedras que estão sorrindo percebem
a unidade da botina com as unhas
o continuísmo íntegro de um pé de milho
até as cavidades do estômago

para mim e por mim tudo está fora
da hipótese de eu ter entrado algum dia
numa coberta coerente de pele
que é idêntica na tessitura à poeira

lá ali estão logo e nunca
as coisas que se encontro eu perco
na concepção de mim momentânea
que foi uma defesa sem fundo

mim no máximo serão lembranças vazias
tiques articulações maneiras
ansiedades que obscurecem o alvo
quando é o alvo que na verdade me escolhe 

colheitas de borracha me alargam
nesse momento bem de terra deitado
no útero estacional das raízes
que bombeiam borboletas de seiva

ei você me diz o mim aí vendo
veleidades de verdades em tudo
que não cabe no querer dizer que ele é
a saliva sentimental e só

você cortando pendurado de noite
o cordão já podre das fantasias
ou você então e sua estátua de sombra
zombando inalcançável do apego

cartazes de você predispostos
a uma impossível reunião de desejos
e também suas parcelas caindo
como dentes enferrujados na mesa

seja sempre você me diz o mim
pois é assim que você chega a não-ser
nem mais nem menos do que a liberdade idiota
de participar serenamente do ar

o ar te come a boca aberta
atrás da porta o sereno espia
tudo se resolve negando
mexendo nas afirmativas gerais

sem mim não tem por que nem você
deixa de atravessar quem seja em pé
ou vira, deitado, uma condição
de cobra dorminhoca sumindo

não tem essa paralisia da ideia
não tem esse poder de ficar
não tem um diamante pescado
não tem uma finalidade qualquer

é dodói mas também é remédio
são mínimas transparências que passam
a enxada que você segura com força
e te finca razoavelmente na terra

no entanto o céu cai no prato
e mesmo a misturada dá certo
tudo que acontece dá certo
ou ensina os movimentos então

na hora sem mim deságuam bocas
quebram-se as barreiras de eu ter
pensado, prensado, prendido o corpo, premeditado
o que naturalmente fracassa

ossos peças coisas sólidas firmes
não há em mim estritamente que sonho
e sinto que esse baú não existe
para desmanchar meu prazer


Leonardo Fróes (n. Itaperuna, 1941), in Assim, com apresentação de Júlia de Carvalho Hansen, Douda Correria, Julho de 2019, s/p.

1 comentário:

Anónimo disse...

Fico contente por saber desta publicação pela Douda Correria. Gosto muito dos poemas do Leonardo Froés. Há um livro intitulado "Vertigens", publicado no Brasil pela Rocco, que nunca me canso de reler.
DRB.