A notícia é
lacónica: Sean Bonney (
Bonney vivia há
cerca de cinco anos em Berlim, trabalhando num pós-doutoramento sobre a obra da
beatnik Diane di Prima (n. 1934). Julgo ter entendido bem, era investigador do
John F. Kennedy Institute for North American Studies na Free University de
Berlim. Poeta empenhado em diversas guerras cívicas, engajado nos movimentos libertários de
esquerda, praticante de uma “arte revolucionária”, por assim dizer, foi autor
de inúmeros panfletos e de alguns livros de poesia, foi crítico, com tese sobre
Amiri Baraka (o beat LeRoi Jones, com quem Diane di Prima teve uma relação), tendo-se estreado em livro em 2002 com volume
intitulado “Notes on Heresy”.
“A Nossa Morte”,
enriquecido na edição portuguesa com as ilustrações de Tiago Cutileiro, é um
livro angustiante. Foi publicado no ano em que o autor desapareceu e não
augurava nada de bom. A “Carta em Tumulto” que abre o conjunto, com referência
a Paul Celan, tem um remate que nos esmurra por dentro: «Estou a ver se ponho
fim a esta merda. Ando a estudar magia, utopia e armamento. Prometo manter-te a
par dos meus progressos». Segue-se um testamento intitulado “Da Escuridão
Profunda”. As missivas são dirigidas ao leitor, havendo na prosa de Sean Bonney
uma fúria, para com o estado do mundo em geral e para com a “ilha racista” em
que nasceu em particular, que nos impele para um labirinto onde niilismo e surrealismo
procuram debalde uma saída.
Cativo num
labirinto de referências literárias, musicais, filosóficas, políticas,
artísticas, Bonney esforça-se por entender a actualidade destilando um ódio
visceral à hipocrisia dominante. Os bois são chamados pelos nomes, mormente os
bois da contemporaneidade britânica que levaram ao brexit, num esforço
inquietante e porventura frustrado de autoconhecimento: «Porque o que quer que
seja que eu vejo quando me olho ao espelho, não é algo que esteja disposto a
aceitar» (das “Aproximações ao Inimigo Solar”). A atitude panfletária surge,
deste modo, sabotada por um desencanto e uma desesperança interiores que transformam o texto num frágil escudo protector contra a opressão social.
Maioritariamente
em prosa, estes textos encenam deambulações, rotinas, uma deriva interior que
não se imiscui de pedir de empréstimo a Artaud a célebre noção do “suicidado da
sociedade” para ilustrar a catástrofe que anuncia. Há um tom
apocalíptico neste livro que é indisfarçável, apocalipse sem expiação nem
redenção. Referências a Baudelaire, Rimbaud, Pasolini, reforçam apenas o
destroçamento interior e a solidão enquanto condenação do eu que despreza e é
desprezado pelo status quo: «Meu enorme amor, ninguém sabe ler a linguagem que
lá está escrita» (de “Abjecto (a partir de Baudelaire)”). A voz de satã que
ecoa nestes textos não é a voz do riso, da sátira, é a voz de um desgosto
insanável, é a voz de um torpor, de um coração espezinhado. Isto mesmo o torna testamentário,
com o seu inventário de referências a perecer diante das sobras de uma vontade
em ruínas: «Quem me dera ser como os insectos que vivem no vento e fazem coisas
espantosas com a seda, mas, em vez disso, estou para aqui a gritar, o que não
tem um caralho a ver com a magnífica seda tecida pelo riso dos insectos» (do “Livro
de Memórias (a partir de Miyó Vestrini).
Se há “literatura” capaz de nos esmurrar o estômago, ei-la forjada neste derradeiro livro do poeta britânico Sean Bonney. Ninguém sairá incólume de “A Nossa Morte”, como atesta o texto que oferece título ao livro: «Todos levados pelo terramoto». Desespero talvez seja o que se retém no final, um desespero que enfurece por nos colocar no centro onde embatem as forças e as fraquezas que se opõem dentro daquele que luta, espoletando um rebentamento interior, íntimo, do qual restam escombros sob a forma de poemas.
2 comentários:
Obrigado por estes dois últimos autores divulgados aqui. São ambos bastante pertinentes. Saúde!
Sempre às ordens. Saúde.
Enviar um comentário