Paulo José
Miranda (n. 1965) é um escritor experiente que tem sabido articular a
publicação de colectâneas de poemas com uma obra ficcional sólida. A
estreia na poesia com “A voz que nos trai” (Cotovia, 1997) foi iluminada pelo prémio
Teixeira de Pascoaes, granjeando com o segundo romance, “Natureza Morta”
(Cotovia, 1999), a primeira edição do Prémio Literário José Saramago. “Aaron
Klein” (Abysmo, Frevereiro de 2020) é o seu mais recente romance. Falar de
romance ou de poesia no contexto desta obra apenas auxilia uma abordagem possível
a géneros distintos que, na verdade, se confundem nos livros deste autor. Há na
escrita de Paulo José Miranda um impulso reflexivo transversal a qualquer dos
géneros que pratique, pelo que tanto os versos como as histórias surgem quase
como pretextos para o exercício crítico do pensamento. Mais do que não ser
excepção, “Aaron Klein” é um interessantíssimo exemplo de como tudo isso se
equilibra numa prosa capaz de não hipotecar o filosófico respeitando um fio
narrativo estimulante e fazendo uso de uma linguagem deveras acessível: «A
grande literatura, dizem, faz-se com aquilo que nos é mais próximo, com os
vizinhos, o bairro onde se vive, a varanda de onde se olha, a cama onde se
sofre. Mas haverá algum lugar mais próximo de nós do que as nossas próprias
reflexões? Pensar é o exterior mais próximo. E quem disse que o próximo é real?
A realidade é um buraco negro que não deixa sair de lá nada, nenhuma luz,
nenhuma informação, nenhuma verdade. E nós não estamos mais ou menos próximos
da verdade, nós somos a verdade, cada um de nós, quer se esteja certo ou
errado» (p. 190).
Organizado em três partes (Lisboa, Telavive, Cancro), neste romance a história podia dizer-se secundária face aos temas abordados. No entanto, o périplo ensaiado pela geografia dos três monoteísmos, com a cidade de Lisboa enquanto centro simbólico onde historicamente confluíram judaísmo, cristianismo e islamismo, permite-nos acompanhar uma personagem na construção de outra personagem. Vera, nome que remete para verdade (será acaso?), é a filha adoptiva e improvável de Aaron Klein, judeu estudioso de Fernando Pessoa, com um historial familiar adverso e muita vontade de deixar descendência. É na sua companhia que vamos descobrindo a personagem que oferece nome ao romance. Vera é a verdade de uma ficção, por assim dizer, à maneira da “autopsicografia” pessoana, é a personagem-guia na busca de outra personagem. São os seus esforços que permitem traçar o perfil de Aaron Klein, tal como surge na belíssima capa de Rui Rasquinho.
O que é verdadeiro ou falso neste romance crivado de cartas, e-mails, testemunhos, intromissões de gente real tais como o escritor português Hélder Macedo ou o israelita Ricardo Ben-Oliel? A mais-valia da ficção é, precisamente, a sua capacidade para transcender a lógica do verdadeiro/falso, penetrando territórios especulativos que permitem abordagens espontâneas, libertas de constrangimentos históricos, a temas cuja complexidade jamais será redutível à enumeração de factos. Assim é com a oposição entre o bem e o mal, tema caro a Paulo José Miranda, ou, de modo mais lato, com a dúvida universal acerca do sentido da vida: «O que é a lógica, senão o exterior do nosso mais interior, a metáfora?» (p. 271) Klein é uma personagem em construção, vai emergindo da obscuridade a partir do empreendimento levado a cabo por Vera, a qual tem como interlocutores privilegiados personalidades reais ficcionadas e personagens ficcionais deveras realistas. Serão umas mais evidentes do que as outras ou tudo quanto se esconde por detrás de um nome nos escapa? Não será o outro a construção que dele fazemos? Não será um nome a cortina que esconde o universo?
Recordemos que este livro surge também no momento em que Paulo José Miranda se confrontou com a elaboração de uma biografia de Manoel de Oliveira, pelo que a problemática biográfica, assim como a questão da identidade, surgem plasmadas neste romance ensaístico, a par de uma abordagem ao mais profundo e grave conflito civilizacional das últimas décadas. Klein, que trabalhou como tradutor, é a versão personificada desse conflito entre a raiz judaica e as ramificações cristã e islâmica que assumiram especial relevância com o Holocausto e a fundação de Israel no pós-Segunda Grande Guerra. “O mundo partiu-se”, diz-nos, e desta fragmentação surde uma necessidade essencial, trágica tal como o era na Grécia Antiga: «A religião mata. O mar Morto é uma metáfora do planeta, daquilo em que o planeta se tem transformado à custa dos humanos e das suas religiões. Não há aproveitamento ilícito do nome de Deus. Não digam que Deus não tem culpa do aproveitamento que os homens fazem dele, ou do nome dele. Deus é ele mesmo ilícito. Infelizmente, e à imagem deste mar demasiado salgado, o que está a desaparecer não é Deus, mas o humano e o planeta que o abriga. Deus não morreu, como Nietzsche escreveu, mas terá de ser morto, se quisermos sobreviver» (p. 206).
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