quinta-feira, 29 de outubro de 2020

A QUEM PERTENCE A LINHA DO HORIZONTE?

Não é a primeira vez que o escritor João Pedro Mésseder (n. 1957) e a ilustradora Ana Biscaia (n. 1978) reúnem talentos num mesmo livro. Há seis anos publicaram na editora Xerefé a plaquete Que Luz Estarias a Ler?. Já então o tema de fundo fora o conflito armado em Gaza, a partir da história de uma menino, Aysha, que teria tentado resgatar dentre destroços os livros de uma escola bombardeada. Nada que não estivéssemos habituados a ouvir. Nesse mesmo ano de 2014 os jornais falavam de clima tenso após ataque a uma escola da ONU no norte do enclave, os noticiários referiam a morte de 15 pessoas e 200 feridos após o bombardeamento de uma escola na Faixa de Gaza. Com maior ou menor precisão no relato dos factos, certo é que por cá se tornou vulgar ouvir falar de “mais uma escola bombardeada em Gaza”. As aspas servem para reforçar o tom de banalidade do mal, expressão usada por Hannah Arendt para se referir ao holocausto nazi. Arendt era de origem judaica. Também o filósofo Yeshayahu Leibowitz sentiu, a certa altura da sua vida, o desconforto de ter que conviver com o mal, acusando o exército israelita de ter uma mentalidade “judaico-nazi”. 
   É para nós difícil de imaginar as consequências de nascer e crescer no Estado da Palestina, ou seja, num território sob a permanente ameaça de uma superpotência mundial que, entre outras coisas, considera justo, equilibrado e legítimo bombardear escolas. Lembro-me da violência na música de Meira Asher, outra israelita que não tem poupado esforços na denúncia das atrocidades cometidas pelas autoridades de Israel. O tema mais recente é a greve de fome de Maher Al-Akhras, preso sem acusação nem julgamento desde 27 de Julho. Os números são avassaladores: 4400 presos políticos palestinianos, entre os quais 39 mulheres e 155 menores. Nada que incomode particularmente os arautos dos Direitos Humanos disseminados um pouco por todo o mundo.
   A Quem Pertence a Linha do Horizonte? retoma o tema, ou seja, insiste na sensibilização para um dos mais graves e ancestrais conflitos armados de que temos memória, o qual diariamente, quotidianamente, insistentemente vem à liça pelas consequências do terror numa Europa que insiste em varrer para debaixo do tapete as questões de fundo, a origem do problema. Neste caso, a questão de fundo é o direito a uma pátria. Por esta mesma razão a pergunta elaborada no título deste livro é poeticamente pungente, levando-nos a pensar num espaço para lá da propriedade. É o espaço da humanidade, ou do humanismo, se quisermos ser utópicos como utópica é a linha do horizonte.
   Dos poemas de Mésseder coligidos nesta obra, escritos entre 2002 e 2019, colhemos um olhar sensível a questões complexas, como sejam as do desenraizamento, do desterro provocado pela ocupação e subsequente expropriação da identidade. Mas colhemos também o nojo de certa indolência ocidental, que, como sugere o poema O ecrã, em 2002, vê a guerra servir-se fria à hora de jantar. Como quem assiste a um filme repetido, obviamente.
   O traço grosso dos desenhos de Ana Biscaia acompanha, na sua rudeza de carvão, o negrume dos escombros, das explosões, cinza que resta da ruína em cenário de morte. Desenhos como a fisga da página 19 ou as mãos onde pedras florescem, nas páginas 9, 21, 33 e 34, etc, são, na sua simplicidade, ilustrações eloquentes de um quotidiano de resistência. Pode uma pedra dar em flor como a flor dá em fruto? Símbolo de resistência, é disso que se trata, estas pedras não se esgotam na sua função bélica. Que conseguem elas contra balas disparadas por armas de alta precisão? São, ao mesmo tempo, e na mesma paradoxal realidade, a primeira pedra de um edifício futuro e o que sobra se um edifício em destroços.
   Poemas tais como Memórias, logo a abrir, e Uma menina, quase no fim, inscrevem igualmente este livro da Página a Página num horizonte de esperança para lá da desolação, com um equilíbrio poético difícil de circunscrever a qualquer faixa etária. Deixo um poema minimalista, por assim dizer, ao estilo de outros que já conhecíamos do mesmo autor:
 
Perguntas de zoologia
 
Ser pássaro em Gaza
como é?
Ser peixe e abelha
como é?
E como é
ser homem?

 
Junho, 2017

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