sexta-feira, 2 de outubro de 2020

APONTAMENTOS SOBRE JOGO DO FIM #7

 

“Jogo do Fim” é a versão original de Isabel Lopes para “Fin de partie” (1957), peça que o Nobel da Literatura Samuel Beckett escreveu em francês antes da versão inglesa “Endgame”. Posterior a “À Espera de Godot”, era para Beckett a preferida das suas peças. Compreende-se a preferência pelo modo como se concentram em “Jogo do Fim” todos os grandes temas beckettianos: tempo, ser, existência, anormalidade.

   No xadrez da cena jogam o rei Hamm e o peão Clov, numa interdependência reconfiguradora das figuras de um Senhor caído em desgraça e de um Escravo incapaz de se libertar. Nagg e Nell são as peças tombadas para fora do tabuleiro. Sobras de um passado indefinido, espreitam do fundo de caixotes do lixo como a memória espreita do fundo do pensamento. Num tempo para lá do tempo, quatro personagens são o que sobra da humanidade numa espécie de bunker, refúgio, abrigo ou covil, em torno do qual um mar de cinzas tomou conta da natureza.

   Escrita na ressaca da Segunda Grande Guerra, sob a ameaça de um conflito nuclear, o “Jogo do Fim” é o retrato de um espaço e de um tempo possíveis após o apocalipse. A um cessar do tempo corresponde também a claudicação das utopias, a ausência de horizontes, a memória feita detrito, uma espera em que o presente se joga na ausência de qualquer perspectiva acerca do futuro.

   O universo especulativo de Samuel Beckett abre-se a inúmeras analogias com uma actualidade assaltada pela vertigem do apocalipse, seja pelos campos de concentração onde milhares de refugiados desesperam no vazio, seja pelos lares da nossa vergonha onde a velhice definha lentamente. Trágica, mas ao mesmo tempo cómica, de uma ironia subtil repleta de gagues em contexto de absoluta estranheza, é à personagem de Nell que cabe uma síntese eventual deste jogo:

 

«— Nada mais ridículo do que a infelicidade, concordo contigo. Mas…»

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