quarta-feira, 21 de outubro de 2020

FORA DO SÍTIO

 


   Da mesma geração que o recentemente falecido Derek Mahon (n. 1941 – m. 2020), o poeta irlandês Bernard O’Donoghue (n. 1945) era por cá completamente desconhecido, ou quase, antes da publicação deste Fora de Sítio (Douda Correria, Julho de 2020). Hugo Pinto Santos deixou-o de fora da antologia Estradas Secundárias — doze poetas irlandeses (Artefacto, Junho de 2013), preferindo prestar atenção a contemporâneos de O’Donoghue tais como o próprio Mahon, Ciaran Carson (n. 198), Eiléan Ní Chuilleanáin (n. 1942) ou Paul Durcan (n. 1944). A ter em conta seria também a poesia de Tom Paulin (n. 1949). São poetas de uma geração relevante, de certo modo premiada com a atribuição do Nobel da Literatura a Seamus Heaney (n. 1939 – m. 2013) em 1995.
   O livro traduzido por João Paulo Esteves da Silva é uma versão possível para Here nor There (1999), título cuja transposição para língua portuguesa seria sempre problemática. Explica o tradutor tratar-se de uma expressão idiomática «que, em inglês, se pode empregar para descrever, criticando, um despropósito». No fundo é como dizer “isso não tem nada a ver com nada”, ou "não é carne nem é peixe". Curioso título para poemas que tão directamente nos enviam para as raízes irlandesas do autor, o qual se mudou para Inglaterra aos 16 anos e por lá foi aprofundando estudos em literatura inglesa. Estreou-se na poesia em 1984, desenvolvendo, desde então, um estilo elegíaco onde um lirismo de tipo clássico convive naturalmente  com a modernidade.
   Os poemas de Fora de Sítio estão pejados de referências a lugares e a pessoas que julgamos pertencerem a um ideário pessoal, porventura íntimo, que faz sobressair com nostalgia as raízes do autor e estimulam uma interrogação acerca de um suposto idílio perdido. Estar fora de sítio é a condição do exilado, seja ele voluntário ou não, é a condição de todo o ser que de algum modo se acha desenraizado e dessintonizado. Mitos irlandeses, memórias da infância, ressonâncias de uma convivência arreigada ao mundo natural emergem em poemas que narram histórias, evocam momentos e circunstâncias, por vezes num tom surpreendentemente irónico. É o que sucede no poema intitulado Conservante: «Se é verdade que o gelo derrete depressa, / Com a luz directa dos raios solares, / E deixamos de ver o sítio onde esteve, / Também há lugares de sombra / E abrigo — em juncais / Ou em sebes — onde ele permanece / Quase até ao meio-dia. E tu, no teu vestido / Cinzento, também estás a desaparecer, / Excepto nos momentos de sombra / Em que o teu rosto é visto em pleno, / Talvez por o teu último beijo na face / Ter sido frio como moeda corrente» (p. 37).
   Muito comum na poesia irlandesa, sobretudo na produzida por uma certa diáspora que fez do poema uma espécie de remédio para o afastamento das origens, a ideia de regresso a casa vislumbra na expressão here nor there/fora de sítio a representação ideal para um sentimento difícil de exprimir. Num dos últimos poemas do livro, as casas avistadas na paisagem, mais do que lugares de pertença, são pontos de identificação onde a “sensação de Irlanda” desperta e assoma ao espírito: «Aquela dor fina que se julgava esquecida — / Mais fumo, certamente, do que chama; / Menos choro do que chuva. E o facto de isto tudo ser / Descabido, estar fora do sítio, e ser, por isso mesmo, a casa» (p. 59). Falar de uma “sensação de Irlanda” é, de algum modo, assumir uma condição estrangeira, a qual, nestes poemas, é também o ponto de partida para algo mais profundo, isto é, um certo desconforto que advém de se sentir fora do lugar. Porventura distante, porventura isolado, talvez solitário, estar fora do lugar pressupõe uma ordem, uma organização, de que não se faz parte. Leituras políticas ou ontológicas são legítimas, conquanto não se pretenda reduzir o poema a nenhuma delas:
 
NÃO TER DE
 
Para John Fuller,  1-1-1997
 
“The opposite of love is not hate but fear”
Herbert MacCabe
 
Nos tempos que correm, o que mais me enche
De satisfação é não ter de
Fazer coisas. Por isso, em modo de férias,
Decidi fingir que não sou daqui da cidade,
Que estou apenas de passagem.
Compro, por exemplo, uma sanduíche e um cappuccino,
E encosto-me a uma árvore, no quintal,
A apanhar ar e a observar os indígenas:
Estes peregrinos, por exemplo, como a carqueja
Que, apesar da sua reputação de idiota
Sabe o que faz quando desce
Pela margem para abraçar o próprio reflexo
E nadar para longe, com ele. No alto
Posso ver o ventre prateado
Duma revoada de pombos. Ou, então, podia visitar
A zona comercial para sentir na pele
Algo em que muitas vezes reparei: o estranho eco
Do guincho do falcão nas caixas do supermercado
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