“Jogo do Fim” (Outubro de 2020) é o título mais recente da
colecção de textos dramáticos que a editora Companhia das Ilhas tem vindo a publicar
em parceria com o Teatro da Rainha. Trata-se da peça que Samuel Beckett, Nobel
da Literatura de 1969, escreveu originalmente em francês com o título “Fin de
partie” (1957), surgindo apenas no ano seguinte na versão inglesa como “Endgame”.
A tradução de Isabel Lopes demarca-se de outras versões em língua portuguesa,
com títulos tais como “Fim de Festa” ou “Fim de Partida”, dando ênfase a uma
ideia de “jogo”, presente tanto no título francês como no inglês, que honra a
essência do trabalho beckettiano em geral e respeita a dinâmica desta peça em particular.
Beckett considerava-a a melhor das suas peças, escrita já depois do sucesso
alcançado com “En Attendant Godot” (1952), não sendo por acaso as comparações com
uma partida de xadrez elaboradas ao longo dos anos por vários críticos e
ensaístas. O que se joga aqui é o fim, uma espécie de xeque-mate, com um rei
(Hamm) imobilizado, cego, restringido ao seu trono decadente, e um peão (Clov) a
arrastar-se de um lado para o outro, em movimentos curtos, pausados, vacilantes.
São deste as primeiras palavras —
«Acabou, acabou-se, isto vai acabar, talvez vá acabar» (p. 10) ,
num cenário que remete tanto para os campos de concentração nazis como para uma
espécie de casamata ou bunker.
É preciso não perder de vista que entre 1954 e
1956, quando a peça foi escrita, a humanidade ainda se recompunha das imagens
traumáticas deixadas pela Segunda Grande Guerra, vivendo-se então debaixo da
eterna ameaça de uma guerra nuclear. A didascália introdutória de “Jogo do Fim”
desloca-nos, precisamente, para um cenário apocalíptico, de luz acinzentada, num abrigo com duas janelas a darem para um mundo em pó. Depois de Clov (peão, servo, escravo) acordar Hamm (rei, senhor), percebemos através das primeiras palavras
trocadas entre ambos que estamos num tempo para lá do tempo e num espaço cujas
principais características são a ruína, o vazio, o abandono. «Que horas são?»,
pergunta Hamm. «As mesmas de sempre. (…) Zero», responde-lhe Clov (p. 12). Mais
à frente, Hamm lamenta: «A natureza esqueceu-se de nós». Clov constata: «Já não
há natureza» (p. 18). Ao tempo-zero e ao espaço-nada correspondem, igualmente,
uma ausência de horizontes, a morte dos ideais e a perda de sentido.
Cenário
desolador, de facto, mas igualmente e surpreendentemente cómico. Entre Clov
e Hamm há uma interdependência que se abre à comédia, uma comédia de tipo grotesco,
tal como se estivéssemos a assistir à interacção entre dois palhaços decadentes no centro
de uma arena em destroços. Desta aparente ausência de sentido fazem ainda parte
duas outras personagens, Nell e Nagg, os progenitores do rei, literalmente remetidos para o
lixo como peças descartáveis, imobilizados dentro de caixotes dos quais por
vezes emergem para receber comida, tentarem beijar-se (em vão), interrogarem-se:
«Porquê esta comédia, todos os dias?» (p. 22). Várias extrapolações podem ser
feitas acerca do teor das acções que matizam a existência destas personagens,
assim como do clima absurdo e metafórico que coloca em cena um Senhor
dependente do seu Escravo, conservando os progenitores dentro de caixotes do
lixo. Podemos, por exemplo, imaginar que aquilo que geralmente apelidamos de
absurdo (ausência de sentido para a existência) é superado por Beckett
abdicando da necessidade desse sentido. Cada gesto, cada acção, cada momento,
são fins em si mesmos determinados por um ter que fazer sem horizonte à vista.
O “Jogo do Fim” é o daqueles que se reconhecem derrotados à partida, percebem a
inevitabilidade da extinção aceitando-a enquanto tal, não carecendo de resposta
para a eterna dúvida: o que faço aqui? Ou outra, muito dada a soluções metafísicas:
para onde vou? À dúvida sobre o que havia antes do universo, Beckett responde
com o que sobrará depois do universo findar. Paradoxal, sem dúvida, pois
pressupõe que algo perdurará depois de tudo terminar. É uma postura irónica,
disponível para leituras psicanalíticas (não corresponderão os progenitores de
Hamm a um passado/memória largado no lixo, à expurgação de um sentimentalismo da
nostalgia?) ou políticas (à interdependência entre Hamm e Clov não poderá corresponder uma anulação da dinâmica histórica do Senhor e do Escravo?), que
privilegia uma leitura artística, criativa, a partir da qual o universo pode
surgir representado entre dois momentos chave: entrada e saída de cena.
Logo no início, Hamm começa por dizer «É a minha deixa» (p.
10), ao passo que já no fim é Clov quem afirma: «É o que se chama sair de cena» (p.
83). Estamos no domínio do teatro, claro, da representação, sim, em que as
personagens fazem questão de nos lembrar a sua essência particular. São
personagens, são peças num tabuleiro de xadrez. Mas que outra coisa será cada
um de nós senão uma peça no tabuleiro da sua cultura, uma personagem no palco da existência social e política? Daí que seja natural projectarmos associações com a actualidade à medida que
vamos lendo “Jogo do Fim”, recordando tanto os refugiados do mediterrâneo cujas
vidas agonizam em espera como os velhos da nossa vergonha definhando em lares
de propriedade duvidosa. A ameaça é global, ecológica, pandémica, o fim dos dias todos os dias parece iminente. O tempo e o espaço do “Jogo do Fim” poderão não ser
históricos, mas encaixam com facilidade nos factos de uma História limite
repleta de visões do Apocalipse. Clov sonha com ordem: «Um mundo em que tudo
estivesse silencioso e imóvel e cada coisa no seu último lugar, por baixo da
última poalha» (p. 60). É o sonho da morte. Estranho é que ele sonhe com o que
parece ter-se concretizado. Talvez ainda não tenha dado por isso, talvez não
tenhamos dado por isso. Talvez por se ter apercebido de tamanha insensibilidade, Samuel Beckett haja dito que a frase mais importante da peça cabe a Nell: «Nada mais ridículo do que a infelicidade, concordo contigo. Mas...» (p. 25).
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