quarta-feira, 18 de novembro de 2020

CARONTE À ESPERA

Publicado pela primeira vez em 2012 numa editora brasileira chamada Aped, Caronte à Espera (Elsinore, Março de 2020) conheceu este ano uma segunda oportunidade. Cláudia Andrade, a autora, assinava então os seus livros com o pseudónimo Victória F. Também Artur, o protagonista desta história, parece andar em busca de uma segunda oportunidade. Reformado, é um homem cuja falência se mostra tanto no plano físico como espiritual. «Um Artur apodrecido» (p. 16), resignado à rotina amorosa das quartas-feiras com Beatriz, sua mulher, passeia por uma cidade onde outros reformados como ele «feneciam, plácida e vagarosamente, alimentando os patos» (idem). A rotina, a desilusão, a sensação de que nada mais resta pelo que valha a pena manter-se vivo, levam-no a pensar na morte, uma «morte sem contratempos, metodologias, dores ou incómodos» (p. 21). Tudo isto é dito no início do livro, pelo que a companhia que nos fará Artur será a de alguém que decide morrer, já só entusiasmado, a palavra é esta, com os seus «planos de morte» (p. 12).
   O potencial suicida que Cláudia Andrade nos apresenta é um homem tímido, titubeante, acanhado nos gestos, hesitante nas decisões, um corpo praticamente arruinado, uma mente praticamente falida. Taralhouco, chama-lhe um primo. Não é um jovem deprimido, não é um poeta com tendências autodestrutivas, não é um espírito assaltado pela angústia existencial que tantas vezes transforma a vida num estertor, não é um suicidado da sociedade nem alguém que soçobra aos pés da revolta provocada pelo estado insuportável do mundo. Há um lado caricato no velho Artur que inspira ternura, uma ternura algo condescendente, reconheça-se, para com a forma atabalhoada de encarar o seu próprio desespero. Ele é um fantasma prestes a deixar-se assombrar por outro fantasma. Um desconhecido numa fotografia do seu álbum de casamento oferecer-lhe-á um desígnio, partindo então na demanda desse desconhecido como quem parte em busca do Santo Graal.
   A viagem empreendida pela personagem principal de Caronte à Espera é, em si mesma, uma improbabilidade, assumindo a dado momento contornos feéricos inesperados. Não me refiro ao modo de falar sofisticadíssimo, requintado e por vezes algo rebuscado das personagens: «O que chamar à consoladora noção de ter chegado miraculosamente a salvo a uma outra, longínqua, porção de irreversível tempo?» (p. 33) — pergunta um segundo primo de Artur. A dimensão feérica vislumbro-a eu no enigmático encontro com Ivan, completo desconhecido que, de um momento para o outro, se vê a massajar os pés de Artur. A narradora bem nos alerta para a «surrealidade sem peso» (p. 54) em que Artur voga, a qual redundará num emaranhado de relutâncias com desfecho antagónico aos propósitos iniciais. Mais adiante reforça-se, para que não nos esqueçamos, que «as suas vísceras continuaram a flutuar numa ambarina solução de surrealidade» (p. 102).
   Não se espere encontrar nesta história de fantasmas interiores e de memórias espectrais uma preocupação com o jogo de verosimilhanças que determina o grau de realismo numa ficção. Estamos no domínio de uma mitologia contemporânea que insiste em manter elos de proximidade com as características narrativas da mitologia clássica, desde logo patenteados no título da obra em causa. Caronte, como sabeis, era o barqueiro que carregava as almas dos mortos. A ironia está, neste caso, em aprender a mergulhar nas águas do Rio Aqueronte e regressar de lá a nado. As descrições da velhice neste livro, projectadas a partir da observação de um corpo frágil, demorado, trémulo, são ao mesmo tempo comoventes e cómicas, havendo nelas a ambivalência de quem se redescobre infantil em idade avançada.
   O que mais agradavelmente impressiona é, contudo, o estilo da autora, sempre equilibrado entre uma expressividade rica em imagens, bastante adjectivada, e a atenção a pormenores aparentemente supérfluos que acabam por se revelar altamente definidores das personagens: «Os passeios pela praia alongaram-se, dificultaram-se, as pernas vencendo atleticamente o apoio movediço da areia mole. Por lá, descobriu a dança das anémonas, o agrado de cumprimentar e ser cumprimentado pelos pescadores da beira-mar e o prazer de se banhar acima dos tornozelos, pelo que comprou até, numa feira local, uns calções de banho de um intrépido azul-cobalto» (p. 95). Assim se descreve, por exemplo, a reaprendizagem do gozo de viver num idoso com intenções de se matar.
   Caronte à Espera é um primeiro romance, já com alguns anos de vida, de uma autora que viu este ano o seu trabalho ser justamente premiado por um volume de contos intitulado Quartos de Final e Outras Histórias. Bem que merece esta segunda oportunidade que lhe foi dada, deixando-nos na expectativa do que o futuro nos reservará
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