sexta-feira, 20 de novembro de 2020

CARTAS

O assunto é polémico e merece discussão: o que há numa carta que justifique a sua publicação? Os exemplos ecoam de várias épocas e com propósitos distintos. As cartas trocadas entre Lou Andreas-Salomé e Sigmund Freud não têm o mesmo interesse das cartas trocadas entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, por residir sobre as últimas uma curiosidade voyeurista que escapa às primeiras. As Cartas Portuguesas, pelas suas características intrínsecas, são objecto incomparável ao que sobre elas foi composto nas Novas Cartas Portuguesas. Estas tinham um propósito libertador que escapa às outras. Sobre o epistolário trocado entre Henry Miller e Lawrence Durrell escreveu Jorge de Sena uma crítica corrosiva, anunciando logo no cartão-de-visita tratar-se de «uma ampla selecção que qualquer par de escritores portugueses e brasileiros (…) teria literalmente vergonha de ver publicada». Este é um dos pontos para mim mais sensíveis. Se excluirmos do cenário algumas e célebres cartas abertas, o que legitima a publicação de textos que presumimos do foro íntimo? A autorização dos autores, o interesse público, a necessidade de esclarecimentos que, a certa altura, parecem só ser possíveis colocando as cartas sobre a mesa. Por cá, são célebres as diatribes geradas pela publicação de Pacheco Versus Cesariny (1974), a que este respondeu, na mesma linha mas sem o mesmo fôlego, com o Jornal do Gato (1974). Tornar pública uma carta pode parecer um gesto revelador. Assim seria, se não aconselhasse o bom senso a desconfiar dessa índole confessional que parece caracterizar a epistolografia. No texto de uma carta temos acesso ao que o emissor pretende fazer chegar ao destinatário, sendo, no limite, pouco avisado julgar que nessa mensagem repousam os restos mortais da verdade. Há cartas cujo conteúdo vem já tão contaminado de calculismo que nelas pouco resta de autêntico. Assim como num texto confessional o autor só confessa o que pretende ver confessado, também numa carta o autor só diz o que pretende ver assimilado pelo seu interlocutor. Numa época como a nossa, em que estes processos foram substituídos pelo instantâneo dos e-mails e das sms, o tema aparenta ser ainda mais controverso. Temos de contar com transformações substanciais no que concerne ao tempo de resposta. Um e-mail pode ou não denotar uma espontaneidade e autenticidade que o tempo de resposta de uma carta preservava, garantindo outrora uma ponderação que nos dias de hoje é cada vez mais traída pela urgência. É relativamente fácil, embora sempre polémico, perceber quando um texto foi pensado, ponderado, calculado, ou resultou de mera necessidade fisiológica. Não faço juízos de valor, mas julgo ser importante ter estes aspectos em conta quando lidamos com epistolografia.

Calhou que no ano corrente me pusesse a ler cartas e me visse obrigado a reflectir tais questões. Deixarei de lado as releituras, que venho assinalando por aqui com breves citações, focando-me em três títulos recentes e uma reedição que li agora pela primeira vez. Da editora Barco Bêbado, as novidades: Pontas de Fogo (Maio de 2020), Intervenção (minha) surrealística?!!!!! (Julho de 2020) e «por menos, só talvez no Biafra» (Setembro de 2020). Da Maldoror, uma reedição: Cartas ao Léu (Junho de 2020), outrora publicadas, em 2005, pelas Quasi Edições. Pode parecer displicente chamar para aqui o pequeno volume de Paulo da Costa Domingos, se apenas tivermos presentes os dois poemas que o abrem assinalando uma atitude de confronto com o meio instalado no terreno das letras portuguesas. Dir-me-ão que o gesto incendiário de pouco valeu, tendo em conta o statu quo. Discordo. Nesta matéria tendo para a epistemologia que compreende a sabotagem dos paradigmas, a qual foi exemplar e pragmaticamente levada a cabo pelo editor Vitor Silva Tavares ao recusar para si o epíteto de marginal, preferindo o de paralelo, fazendo da sua vida (repito e sublinho: vida) um modelo de incompatibilidade com mercado editorial. Não é por acaso que o nome do editor surge no final desta plaquete — celebrativa? sinalizadora? —, numa breve e iniciática missiva onde sobressai certa epígrafe de José de Almada Negreiros a sintetizar exemplarmente a relação de um país com os seus poetas. O que daqui se retira é inequívoco, mais do que nos desculparmos com o que a vida reserva importa assumirmos sem transigências as opções que fazemos na vida. Num meio onde dar uma no cravo e outra na ferradura é lei, traz algum conforto perceber que nem todos estão dispostos a obedecer à lei.
Caso conhecido de incumprimento, padrasto de epígonos abastardados que o próprio jamais imaginaria, foi Luiz Pacheco. Intervenção (minha) surrealista?!!!!! reproduz uma carta ao mesmo Vitor Silva Tavares, provavelmente escrita em Caldas da Rainha, provavelmente datada de 1967, sobre a putativa participação de Pacheco no movimento surrealista português. O assunto está mais que debatido, não havendo nesta carta nada de especialmente relevante para quem conheça a história. À excepção, talvez, de um pormenor. Algo que tantas vezes escapa a quem se debruça sobre tais temas, mas não escapou à inteligência de Pacheco (que a tinha, por mais que a procurem reduzir a mera caricatura). Simples: sobre surrealistas e neo-realistas, sobre conflitos entre uns e outros, o melhor era perceber, antes de mais, de onde veio esta “rapaziada”. Pelas origens entenda-se as classes sociais. Ao seu estilo, lá vai adiantando o autor de Comunidade: «Está muita coisa por dizer, outras por averiguar, talvez mais ainda já bem sabidas e averiguadas mas que não convém a ninguém dizer — em público, pelo menos». Convém, pois, entender qual o berço dessa dita “literatura clandestina” que se opôs ferozmente ao que repudiava. A dúvida é sociológica, mas não só. A questão das origens rapidamente nos deslocará para questões mais sensíveis, de subsistência, de sobrevivência, que raramente são varridas para debaixo do tapete por uma cultura ainda hoje refém da legitimação académica.
É relativamente fácil ser-se malandro com as costas quentes, mais fácil ainda quando, além das costas quentes, se tem acesso à massagem consoladora de patrocinadores fiéis. Sobre tais matérias, o caso Cesariny foi uma delícia de pormenores. Tivesse optado pelo destino que o pai lhe traçara, e teria sido, muito provavelmente, um ourives frustrado de bolsos cheios. Não deu ouvidos ao papá, comeu, digeriu e defecou o cordão umbilical. A brincadeira custou-lhe os dentes, são guerras que se pagam caro, com o corpo. Nem sempre matam, mas é como se matassem. Moem até ao osso. Torna-se ao mesmo tempo impressionante e entediante verificar como ainda hoje, passados 70 anos sobre a publicação de Corpo Visível, há quem se entretenha a discutir se Cesariny foi um grande poeta da língua portuguesa. Ou se o que foi de pintor é suficiente para que conste nos manuais. Melhor seria que esclarecessem o que foi feito com o milhão outorgado à Casa Pia por um homem que, a certa altura, desabafa para nosso desconforto: «Depois da vida Toda Vagabundo — O MELHOR! — escudo e meio para a bica — cheguei à bem mais horrível situação — se é sítio — de, darem-me algum, e eu NÃO TER NINGUÉM com quem gastar!» A correspondência trocada entre Mário Cesariny, o brasileiro Sérgio Lima (ainda vivo) e Vítor Silva Tavares, tendo em vista a publicação do livro Aluvião Rei na &etc, testemunha um estar e um fazer que desejamos acreditar não se ter perdido por completo, pois mostra-nos como à publicação de um livro não subjaz apenas a ânsia imediatista de atirar para o mercado mais um conjunto de folhas manchadas com tinta. O preço que se paga pelo amor (haverá outra palavra?) manifesta-se na ironia de Silva Tavares, quando a dado momento diz a Cesariny: «serão amanhã entregues na distribuidora (pomposo nome para uma empresa que não consegue colocar, quanto mais vender, 200 livros da & etc…) uns quantos, para incautos e amadores. É sina e será fado. Cumpra-se» (p. 47).
Outra dimensão da mesma problemática vem retratada em Cartas ao Léu, correspondência de Luiz Pacheco enviada a João Carlos Raposo Nunes, poeta e livreiro de Setúbal. Deste volume sublinhemos, antes de mais, o ensaio de António Cândido Franco sobre a epistolografia de Luiz Pacheco, assim como as notas diversas e os anexos que enriquecem sobejamente um conjunto de cartas que pouco interesse teriam não fosse o processo de dissecação a que foram sujeitas. Entre os anexos há um texto de Pacheco, datado de Maio de 1994, publicado inicialmente no jornal O Inimigo, que deve fazer reflectir, pelo que possa ter de datado ou de estúpida e irremediavelmente imperecível. É um desabafo sobre o “negócio” dos livros, o qual pode ser interpretado sob múltiplas perspectivas. As mais comuns são as do editor e do autor, embora a do livreiro também conte. E a do leitor, já agora. E a da crítica. Dos objectos que povoam o nosso quotidiano, o livro é, sem dúvida, aquele que mais está sujeito a avaliações divergentes, tantos são os intervenientes na sua execução. Pacheco ensinou-nos o mérito que pode haver em dizer mal, o qual não é unilateral nem pode ser dissociado do demérito que há na intolerância a uma crítica ou ao contraditório. Nisto, é sabido, os maiores amantes de Pacheco e afins são os mais intolerantes à crítica. E autocrítica têm pouca ou nenhuma. Estão de mal com o mundo julgando-se acima das misérias do mundo, colocam-se no centro à volta do qual tudo gira. Pacheco ensinou-nos também o valor da obstinação, dando lições de coragem num período da nossa história em que foram tantos os cobardes a fazerem-se passar por heróis. Isso e mais lhe devemos, algo que suplanta o retrato caricatural que dele pretendem fazer história. No final da vida, com um sorriso de orelha a orelha, fez o rescaldo a calotes, dívidas, desfalques. O saldo do balanço é de uma indigência que chega a ser cómica, mas deixa um travo a acidez que é o de reconhecermos naquele balanço quase cego o destino reservado a quem opte pela graça de um viver livre. O mais certo é o negócio fechar por falência, como certa é a morte num corpo. Com que nos comprometemos, então, enquanto por cá andamos? Que compromisso nos exige a criação? A paixão no fazer ou a ânsia de ganhar?

2 comentários:

Take Direto disse...

Adoro a Barco Bêbado e adorei "por menos talvez só no Biafra". Tenho de dar uma vista de olhos no "Pontas de Fogo".
As cartas são deliciosas de se ler. Conhecer as personagens (?) de carne e osso.
Um abraço

CCF disse...

Esta manhã comprei 6 livros na Culsete, por mim não vão morrer nunca:)
~CC~