quarta-feira, 23 de junho de 2021

ILUMINAÇÕES

Chamemos-lhe desterritorialização da memória. Desconheço se alguém já cunhou a expressão, não sendo relevante para o efeito. É um dos mais graves problemas da actualidade, do hodierno, disso a que dais o nome de pós-modernidade e contemporaneidade. Reflecte-se quotidianamente em dois momentos flagrantes, quando alguém nos remete para um tempo que foi o seu, como se esse tempo e o tempo em que se está houvesse algum tipo de cisão, como se o nosso tempo não fosse sempre o tempo presente, e reflecte-se também nesse processo de desmemoriamento operado por todos quantos querem fazer crer na ausência de um passado, como se o fruto colhido na estação certa não tivesse madurado, como se entre esse fruto e as raízes saudáveis da árvore em que ele é colhido não houvesse ligação alguma. Apodrecidas as raízes, morta a árvore, extinto o fruto. Não há presente sem passado, não há futuro sem presente. Dado adquirido, mas ludibriado pelo simplismo superficial e a trágica simplificação da história em curso nestes dias determinados pelo urgente, pela novidade, pela velocidade informativa, pelo fugaz e pelo efémero. A velocidade a que andamos distrai-nos da lentidão dos fluxos históricos, da insistência e perseverança por detrás dos grandes acontecimentos. Temos de reaprender a lentidão. Sem o mergulho esforçado nas raízes nada se compreende e tudo se reduzirá ao mero entretenimento, do qual não provém transformação alguma benéfica para a humanidade. Apenas distracção. Ora, um povo distraído é um povo amorfo, imbecilizado, incapaz de se insurgir contra a maldade, é um povo escravizado. Sabiam-no os romanos com os seus circos, sabe o poder destes tempos em que as horas de sono foram substituídas pelo sonambulismo social. Nunca tanta luz iluminou tanto cego. Apodrecidas as raízes, morta a árvore, extinto o fruto.

Juraan Vin, “Diários”
(tradução minhas)

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