quinta-feira, 24 de junho de 2021

O TELL DO LARGO DE SANTOS

 


   São coisas que acontecem, acidentes. Evitáveis? Inevitáveis? Só Deus, a existir, saberá. O escritor William S. Burroughs vivia no México com Joan Vollmer. Numa noite de copos, com o arraial montado no Bounty Bar, Burroughs lembrou-se de imitar Guilherme Tell. De vez em quando dava-lhe para aquilo. Sucede que a pontaria do americano não estava tão afinada como se julga ter sido a do suíço. Joan colocou um copo sobre a cabeça e William disparou. Falhou o alvo, a mulher morreu. Saiu torto o decalque. É uma daquelas histórias trágicas que adquirem com o passar dos anos um significado algo anedótico. Mas foi mesmo assim, verdade verdadinha, por muito que custe acreditar.

   Há coisa de 9 meses, tantos quantos leva um ser humano a vir ao mundo, também foram diversos os alvos falhados. O país andou três meses consecutivos (faço as contas por baixo) a discutir a realização da Festa do Avante. A excitação foi tanta que levou uma conhecida pivot de informação a apresentar como verdadeira, em pleno Jornal da Noite, uma capa do New York Times que era falsa. Fake news, como agora se diz e muito se pratica. Real e verdadeiro foi, e por tal merece ser lembrado, o discurso hipócrita de um dos guilhermes desta vida.

   João Cotrim Figueiredo, deputado único da Iniciativa Liberal, queixava-se então dos privilégios dos partidos. «Os direitos que os partidos políticos têm não devem ser mais do que aqueles que os cidadãos têm», salientava, reclamando das centenas de eventos cancelados em tom que diríamos tão certeiro como a pontaria de Wilhelm: «se os organizadores não puderem garantir as regras, não podem realizar o evento e ponto final». O PCP cumpriu, a festa fez-se, os críticos engoliram em seco a capacidade de organização dos comunistas. São coisas que acontecem, acidentes.

   A dúvida que agora nos assalta é acerca da durabilidade da coerência de um político liberal. 9 meses de gestação serão suficientes para virar o bico ao prego? Tudo aponta para que assim seja, pelo que não devemos espantar-nos com o arraial liberal levado a cabo na Lisboa entretanto sitiada. Santo António, o que pregava aos peixes, tinha de ser comemorado com sardinhas e minis e barraquinhas, tudo assim muito mini, inho e inhas, independentemente do parecer desfavorável da DGS. A coerência dos liberais é tipo um martelo de São João. Faz barulho mas não aleija. E lá fomos nós mimoseados com mais uma de muitas dessas festinhas que têm feito as delícias do vírus, confraternizações de gente que se está nas tintas para máscaras e mostra mais interesse noutros álcoois que nãos os desinfectantes. Distanciamento? Para quê?

   Até brincadeirinhas ameninadas à Guilherme Tell tivemos, embora com resultados mais ao estilo do infeliz William S. Burroughs. Falharam os alvos todos. Os pimpolhos da Iniciativa Liberal adoram estas coisas, são brincalhões, entertainers com o beneplácito de uma comunicação social rendida ao espectáculo. Só isto explica que, desta feita, ao contrário do que se passou há 9 meses, tenhamos sido poupados à indignação encolerizada do especialista em assuntos marcianos da SIC: José Gomes Ferreira. Deste e doutros como este, agora menos incomodados com tais procedimentos.

   O que chateia no arraial-comício da Iniciativa Liberal não é a incoerência desta gente, que não surpreende nem faz mossa. Mais do mesmo. O que verdadeiramente incomoda é, por uma vez na vida, sermos obrigados a não discordar totalmente de Rui Rio: «Como é possível a IL ter criticado o PCP e agora ainda fazer pior que os comunistas?» Dizemos em parte porque os comunistas não fizeram mal, fizeram tão bem que até podiam administrar cursos e workshops sobre como fazer. Infelizmente, aquilo que para os liberais era há 9 meses um atentado à saúde pública transformou-se, por obra e graça de quantos santos vos aprouverem, num exemplo de esperança.

   As flechas disparadas por Cotrim Figueiredo e seus caniches falharam o alvo. Todas. Moral da história: as pessoas queixam-se em geral do cinismo, umas sem saberem do que estão a falar, outras por desgraçadamente desprezarem o sentido de humor dos cínicos. Mais nefasta é a hipocrisia. É o democrata que actua como tirano, cerceando a contradição e impedindo o debate crítico. É o liberal que actua como um conservador. É o moralista arrivista, egocêntrico e chico-esperto. É o social-democrata que se confunde com o socialista na esmola que dá ao pobre para se isentar dos crimes que comete e do egoísmo que propaga. É a ausência de coluna vertebral, uma sociedade de invertebrados sem palavra em que se confie nem gestos inspiradores. Pior do que a famigerada cassete comunista é o disco riscado do capitalismo e o CD danificado dos liberais.

 

Henrique Manuel Bento Fialho

Caldas da Rainha, 18/0/2021



O Palhinhas & Ca. 

colecção periódicos locais/mensais

número 71

directório colectivo: José de Matos-Cruz, Joaquim Jordão, António Viana, Álvaro Biscaia

Junho de 2021


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