São coisas que acontecem, acidentes. Evitáveis? Inevitáveis? Só Deus, a
existir, saberá. O escritor William S. Burroughs vivia no México com Joan
Vollmer. Numa noite de copos, com o arraial montado no Bounty Bar, Burroughs
lembrou-se de imitar Guilherme Tell. De vez em quando dava-lhe para aquilo. Sucede
que a pontaria do americano não estava tão afinada como se julga ter sido a do
suíço. Joan colocou um copo sobre a cabeça e William disparou. Falhou o alvo, a
mulher morreu. Saiu torto o decalque. É uma daquelas histórias trágicas que
adquirem com o passar dos anos um significado algo anedótico. Mas foi mesmo
assim, verdade verdadinha, por muito que custe acreditar.
Há coisa de 9 meses, tantos quantos leva um ser humano a vir ao mundo,
também foram diversos os alvos falhados. O país andou três meses consecutivos
(faço as contas por baixo) a discutir a realização da Festa do Avante. A
excitação foi tanta que levou uma conhecida pivot
de informação a apresentar como verdadeira, em pleno Jornal da Noite, uma capa
do New York Times que era falsa. Fake
news, como agora se diz e muito se pratica. Real e verdadeiro foi, e por
tal merece ser lembrado, o discurso hipócrita de um dos guilhermes desta vida.
João Cotrim Figueiredo, deputado único da Iniciativa Liberal,
queixava-se então dos privilégios dos partidos. «Os direitos que os partidos
políticos têm não devem ser mais do que aqueles que os cidadãos têm»,
salientava, reclamando das centenas de eventos cancelados em tom que diríamos
tão certeiro como a pontaria de Wilhelm: «se os organizadores não puderem
garantir as regras, não podem realizar o evento e ponto final». O PCP cumpriu,
a festa fez-se, os críticos engoliram em seco a capacidade de organização dos
comunistas. São coisas que acontecem, acidentes.
A dúvida que agora nos assalta é acerca da durabilidade da coerência de
um político liberal. 9 meses de gestação serão suficientes para virar o bico ao
prego? Tudo aponta para que assim seja, pelo que não devemos espantar-nos com o
arraial liberal levado a cabo na Lisboa entretanto sitiada. Santo António, o
que pregava aos peixes, tinha de ser comemorado com sardinhas e minis e
barraquinhas, tudo assim muito mini, inho e inhas, independentemente do parecer
desfavorável da DGS. A coerência dos liberais é tipo um martelo de São João.
Faz barulho mas não aleija. E lá fomos nós mimoseados com mais uma de muitas dessas
festinhas que têm feito as delícias do vírus, confraternizações de gente que se
está nas tintas para máscaras e mostra mais interesse noutros álcoois que nãos
os desinfectantes. Distanciamento? Para quê?
Até brincadeirinhas ameninadas à Guilherme Tell tivemos, embora com
resultados mais ao estilo do infeliz William S. Burroughs. Falharam os alvos
todos. Os pimpolhos da Iniciativa Liberal adoram estas coisas, são brincalhões,
entertainers com o beneplácito de uma comunicação social rendida ao espectáculo.
Só isto explica que, desta feita, ao contrário do que se passou há 9 meses,
tenhamos sido poupados à indignação encolerizada do especialista em assuntos
marcianos da SIC: José Gomes Ferreira. Deste e doutros como este, agora menos
incomodados com tais procedimentos.
O que chateia no arraial-comício da Iniciativa Liberal não é a incoerência
desta gente, que não surpreende nem faz mossa. Mais do mesmo. O que
verdadeiramente incomoda é, por uma vez na vida, sermos obrigados a não
discordar totalmente de Rui Rio: «Como é possível a IL ter criticado o PCP e
agora ainda fazer pior que os comunistas?» Dizemos em parte porque os
comunistas não fizeram mal, fizeram tão bem que até podiam administrar cursos e
workshops sobre como fazer. Infelizmente, aquilo que para os liberais era há 9
meses um atentado à saúde pública transformou-se, por obra e graça de quantos
santos vos aprouverem, num exemplo de esperança.
As flechas disparadas por Cotrim Figueiredo e seus caniches falharam o
alvo. Todas. Moral da história: as pessoas queixam-se em geral do cinismo, umas
sem saberem do que estão a falar, outras por desgraçadamente desprezarem o
sentido de humor dos cínicos. Mais nefasta é a hipocrisia. É o democrata que
actua como tirano, cerceando a contradição e impedindo o debate crítico. É o
liberal que actua como um conservador. É o moralista arrivista, egocêntrico e
chico-esperto. É o social-democrata que se confunde com o socialista na esmola
que dá ao pobre para se isentar dos crimes que comete e do egoísmo que propaga.
É a ausência de coluna vertebral, uma sociedade de invertebrados sem palavra em
que se confie nem gestos inspiradores. Pior do que a famigerada cassete
comunista é o disco riscado do capitalismo e o CD danificado dos liberais.
Henrique Manuel Bento Fialho
Caldas da Rainha, 18/0/2021
O Palhinhas & Ca.
colecção periódicos locais/mensais
número 71
directório colectivo: José de Matos-Cruz, Joaquim Jordão,
António Viana, Álvaro Biscaia
Junho de 2021
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