quarta-feira, 2 de junho de 2021

O LAVRADOR DA BOÉMIA

 

   Santo Agostinho relata a perda de um amigo no Livro Quarto das Confissões. A violência da dor, que apenas o tempo apazigua, leva à dúvida: «o homem tão querido que perdera, era mais verdadeiro e melhor que o fantasma em que lhe mandava ter esperança». É dor do mesmo tipo aquela que ecoa no pranto do Lavrador concebido por Johannes von Saaz (n. 1350 – m. 1415), também conhecido como Johannes von Tepl. Pouco se sabe acerca da sua vida. Viveu a maior parte do tempo na Boémia e escreveu um poema de índole humanista que está na origem da peça agora publicada pelo Teatro da Rainha e a Companhia das Ilhas, com tradução de Isabel Lopes a partir da versão cénica francesa de Dieter Welke.
   O Lavrador da Boémia é um diálogo entre um Lavrador amargurado pela perda da amada e a Morte que lha roubou, um pouco à semelhança do que o realizador sueco Ingmar Bergman veio a conceber no magnífico O Sétimo Selo (1956) — embora aqui a morte jogasse xadrez com um cavaleiro de regresso das Cruzadas em tempo de peste. A discussão entre o Lavrador e a Morte, escrita num estilo filosófico muito comum em toda a Idade Média, estava ainda longe de possibilitar um jogo entre adversários tão desiguais. A desolação de um homem a tentar ultrapassar o luto da amada não tem argumentos à altura do todo-poderoso Senhor da Morte, mas, ainda assim, é de uma ousadia retórica imperturbável. A perda atiça-lhe a fúria, alimenta-lhe a raiva, impele-o a acusações que se misturam com lamentos em busca de um conforto fugidio. São uivos que ecoam desde que o homem se confronta com a finitude, mas neste caso sobrecarregados pela ausência de sentido.
   Distinguimos amiúde a morte por causas naturais das mortes inesperadas. Entre estas, as dos jovens são as que mais pesam por serem as mais absurdas. Porque morre alguém que ainda não viveu o tempo que julgamos justo viver? Porque desaparece precocemente quem aparenta estar a meio de um trajecto? O choque advém tanto da constatação do carácter contingencial da vida, sujeita ao acaso e ao acidental, logo sabotadora de uma ciência fundamentada no previsível, como da efemeridade do que vive. A dúvida impõe-se a quem parta de princípios como aqueles que vigoravam em 1401, ano em que o texto de Johannes von Saaz surgiu, e predominam em 2021: se Deus existe, qual a razão para levar tão cedo as suas criaturas? Por que razão permite Deus que uma criança morra? Neste caso, a jovem e virtuosa Margarida, a décima segunda letra, a Letra M, como no espectáculo levado a cabo pelo Teatro da Rainha em 2009, não seria merecedora de outra longevidade?
   São dúvidas legítimas, talvez mais hoje do que outrora, pois hoje podemos erguer-nos contra a vontade de Deus. Mesmo sabendo do fim inevitável reservado a tudo quanto vive, é possível questionar a ausência de sentido e especular sobre as razões de ser assim. As explicações desta Morte do humanista von Saaz são surpreendentemente racionais. A Morte racionaliza o espaço, é uma gestora de stocks, há nela uma função de organização da vida na Terra que justifica a economia da dor sugerida ao pobre Lavrador: «Quanto mais amor te derem, maior será o teu desgosto. Se tivesses amado menos, menor seria o teu desgosto». É um argumento perigoso, pois este amor pode não ter como objecto apenas o outro, mas também o próprio e até, em último caso, a vida em sentido geral. Pode a dor ser superada pelo desamor?
   Numa coisa a Morte tem razão, a sua metodologia corresponde a uma inexorabilidade que está no princípio da própria vida. É do húmus que medra a flor. O Lavrador tem dúvidas, questiona: «Quem sois vós? Donde vindes? Onde estais? Para que servis?» E a morte responde: «somos o fim da vida, o fim da existência, o fim do ser, e a origem do mundo». Eis uma ontologia da morte, se tal coisa for possível, que ainda hoje preservamos sem direito a grandes desvios. A Morte torna-se então sarcástica, impõe as suas razões a um Lavrador desesperado. O Lavrador é a vida, lavra e semeia. A Morte ceifa. Lavrar e ceifar são, no fundo, a essência do dinamismo que permite a renovação e a renovação é imprescindível para que o Tempo não cesse. Em cessando o Tempo, pois que tudo cessaria.
   Não devemos pois ser tão cruéis para com a Morte, mesmo quando ela parece ser implacável para connosco. Não tendo do homem a melhor das opiniões, como questionar-lhe a vaidade que nos aponta e a tolice que desvela sempre que se nos apresenta? O pranto do Lavrador é compreensível, mas inútil. É aceitável, mas infrutífero. Pelo menos em aparência, porque, na realidade, é desse pranto que brota aquilo a que podemos chamar uma clarividência da Morte. Ela desmente o princípio de não contradição, a sua natureza é ambivalente e dúbia, a morte é e não é ao mesmo tempo, rodeia-nos sem que a vejamos, acompanha-nos sem que a sintamos. Só a nossa própria morte não choraremos, pois quando ela chegar o medo terá partido. E o que leva ao choro, na verdade, é o medo, nada mais senão o medo. O medo do desconhecido, o medo da solidão, o medo do abandono, é o medo que nos faz chorar. O medo da morte, da morte nossa descoberta na morte dos outros.

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