terça-feira, 6 de julho de 2021

UMA CARTA PARA INÊS

 


 

Alongo-me em hesitações sobre a forma mais adequada de me dirigir à vossa pessoa. Nem sei se deva tratar-vos como pessoa. Talvez devesse antes chamar-vos personagem, ou impersonagem, como diria aquele que pela segunda vez vos concebeu. Para mim, sois pessoa, tão de carne e de osso e de alma como aquelas com quem diariamente me cruzo na rua. Mas estas, de um modo geral, pouco me dizem, ao contrário de vós, com quem tanto tenho falado nestes últimos tempos. Direi linda Inês, como Camões outrora falando da veemência do amor? Ou deverei antes adoptar um tom formal, menos lírico? Inês, pessoa Inês, a que fica à espera de quem parte, para vós não há tratamento ideal. Ecoais do tempo em que as cartas eram gravadas em tábuas de terracota, vosso ser é do barro com que Deus moldou o homem e a mulher. Cinzelo na madeira de uma árvore muito antiga vosso nome, ele escorre como resina na direcção dos meus dedos e cola-se à minha pele como uma espécie de lacre carimbado pelas impressões digitais do meu corpo. Sois aquela que ficou, a que espera por quem partiu. Se acerca de vós poucas teses se erguem é por ser mais lucrativa a ventura e as desventuras de quem se pôs a caminho. Confesso-vos quanto também em mim o desejo de partir foi em tempos alimento, durante anos julgando que melhor seria deixar para trás tudo quanto fui. Supunha que ao abandono poderia corresponder a cisão de um cordão umbilical que sempre me manteve preso às raízes. Sois aquela que espera, como vós esperei eu uma vida inteira, não por alguém que de mim se tivesse afastado, mas pela minha própria saída para outro lugar. Durante anos foi de mim mesmo que fiquei à espera. A minha viagem foi esperar por mim. Não é de mim, porém, que pretendo falar-vos. É de vós, Inês, aquela cujo sofrimento tem a forma da esperança, a que envelhece assistindo ao definhar de tudo quanto à sua volta se movimenta. Inês, a que permanece sonhando com regressos, ansiando o retorno de tudo quanto desapareceu no horizonte. Imagino-vos sentada num porto, num cais, numa pedra no alto de uma montanha a mirar o horizonte como quem aguarda um milagre. Sois a angústia dos que esperam tanto quanto a melancolia dos que ficam pensando, imaginando, cismando, conjecturando no que teria sido a vida se não tivesse sido esse ficar, interrogando-se sobre o que será feito desses que não ficaram e dos quais não nos chegam senão pólenes de impaciência. Vossa ansiedade é a minha agonia. Envelheceis enquanto aguardais, vosso futuro ficou retido no vosso passado. Vejo em vós, Inês, as mães e as mulheres forçadas ao abandono como edifícios devolutos. Amantes de paixões interrompidas pela realidade. Vejo minha mãe com minha irmã ao colo enquanto meu pai partia para uma África incógnita. E ocorrem-me os rostos sombrios de todos esses que em aldeias e cidades desconhecidas, distantes, aguardam por novidades dos seus, daqueles que se afastaram para se perderem na selva ignota da fortuna, uma sorte que lhes permita dizer, pelo menos uma vez na vida: venci o meu destino. A vós me dirijo hoje, Inês, pois em vossa voz tornei a escutar um cântico que há muito não escutava. Um chamamento, talvez, ou um lamento eivado de invocações. O que de vós se reflecte em mim é a desilusão e o desencanto de quem não vê modos de se libertar de si mesmo. Quero dizer, de quem não vê forma de fintar o seu fado. Também em vós vislumbro a carne que se transforma em silhueta à medida que se afasta até que se perca por completo para além do horizonte, para além da utopia. Neste preciso instante sois miragem. Mas acreditai que mesmo perdendo-vos por completo, isto é, mesmo deixando de vos avistar, jamais desparecereis em mim. Tal um espectro, habitareis para sempre o meu coração.

 

Ao alto, fotografia da Margarida Araújo. A actriz Cibele Maçãs interpreta Inês, em diálogo com Carlos Batista, o jovem Pepito que sonha com uma comuna onde fará de Inês rainha. Este texto é dedicado a todos quantos estiveram envolvidos na concretização de Lázaro Também ele sonhava com o Eldorado, peça de Jean-Pierre Sarrazac, em cena nas Caldas da Rainha entre os dias 6 e 10 de Julho de 2021. Um especial agradecimento ao encenador Fernando Mora Ramos por mais este desafio.

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