sábado, 25 de setembro de 2021

DIA DE REFLEXÃO

    As autárquicas são aquelas eleições onde mais se esbate a distância entre candidatos e eleitores. De uma ponta a outra do país as bermas das estradas tingem-se de cartazes exibindo rostos familiares, gente mais ou menos conhecida na sua terra, facilmente identificável no quotidiano das autarquias. As ruas atapetam-se de panfletos com propostas, frases feitas, chavões, intenções, promessas, slogans previsíveis com mensagens simples e directas. Encontramos o candidato X ou Y no restaurante, no mercado, na praça, e cumprimentamo-nos, damos os bons dias e trocamos meia dúzia de palavras. Bebemos um cafezinho, distribuímos palmadinhas nas costas. Somos humanos, cidadãos, damo-nos uns com os outros, convivemos, fazemos parte da mesma comunidade. Isto tem tanto de bom quanto de mau, pois na mesma medida em que supera barreiras também as ergue através de estigmas fomentados por simpatias e antipatias. É sempre melindroso ter que dizer a um amigo: não estou contigo, o meu projecto é outro.
   Num país ainda pautado pelo nepotismo generalizado, os caciques ganham força nas autárquicas. Percebemos isso desde o momento de formar uma lista até à hora de analisar os quadros dos municípios. As câmaras municipais são poderosas entidades empregadoras, gerem interesses económicos e perspectivas de vida. O conservadorismo que emperra a mudança tem nesta realidade a sua mais evidente explicação. Qualquer partido que conquiste o poder numa Câmara Municipal dificilmente o abandonará, para tanto basta fazer uso táctico e manipulador do seu mais forte argumento: distribuição de cargos, empregos, trabalho, salários. Fica assim pervertido o debate político, pois poucos serão aqueles que estão disponíveis a abdicar de uma vida estável em nome do pensamento crítico. Quem tiver algo a dizer, cale-se. É o mesmo nas empresas, “eu até dizia, mas não vale a pena. Uma pessoa depois é que fica mal.”
   Criticar publicamente Medina em Lisboa significa colocar-se à margem do poder, apoiar publicamente Santana Lopes na Figueira significa colocar-se no centro de uma hipótese de poder. Isto oferece ministérios, beneficia contratos. Chamam-lhe nomeações de confiança para desagravarem o que na realidade é, uma forma de extrapolar a divergência corrompendo o pensamento crítico. Transformados em entidades empregadoras, ou, se preferirem, em meros patrões, os presidentes de câmara tendem invariavelmente a optar pelos lacaios oportunistas que não geram discussão. Não estando dispostos a discutir, eximem-se de convites a adversários para cargos onde é necessário dar serventia. É cada vez mais difícil elaborar uma lista também por estas razões. As pessoas com competência não querem ficar marcadas, sobrando um refugo à base de videirinhos e cata-vento.
   A dado momento, julgou-se que os chamados movimentos de cidadãos independentes podiam inverter isto. Sucede que esses cidadãos, regra geral, nada têm de independentes, sendo os movimentos formados a partir de cisões entre antigos camaradas. A independência é a fachada por detrás da qual se escondem rancores e frustrações, invejas e ambições goradas. Por vezes basta o desagrado pelo lugar ocupado numa lista ou a corriqueira atençãozinha que ficou por se concretizar. Julgo que uma imensa maioria dos chamados movimentos cívicos tem na sua génese esse tipo de questiúnculas, as quais se alicerçam num plano ideológico pantanoso minado pela mera vaidade pessoal. Daí que raramente vinguem e, sobretudo, não perdurem no tempo, esmaecendo à medida que os seus quadros sejam reintegrados no sistema partidário tradicional ou se afastem radicalmente da actividade política.
   Trágico é, deste modo, o subnível a que chegámos em matéria de congregação cívica, ou seja, em matéria de estímulos à participação na vida da cidade. As tácticas de sedução sofrem por vezes inflexões arrojadas, quase sempre para caírem naquele ridículo que leva a sentir vergonha pelas figuras tristes de terceiros. Enchem-se páginas com casos, anedotas, tiradas e jogadas de uma boçalidade consternadora. A gracinha e o riso sobrepõem-se, em termos mediáticos, à discussão de ideias e de projectos. Ganha quem tiver a melhor imprensa, quem for mais simpático e atractivo aos olhos do mercado de consumidores de notícias Talvez haja neste diagnóstico alguma presunção, talvez esta forma implacável de avaliar o trabalho cada vez mais oneroso de ser convincente aos ouvidos de quem não quer ouvir se revele injusta. O busílis reside precisamente neste paradoxo facilmente constatável: quanto mais sério, menos popular. A política aos Isaltinos.
   E quanto maior a proximidade entre políticos e eleitos, menor o entusiasmo e a glorificação. Não é por acaso que o Chega optou por colocar o seu grande líder em todos os cartazes, disseminando o rosto demagógico e ambicioso do deputado único por aldeias, vilas e cidades de norte a sul do país. Assim procura disfarçar a vulgaridade das suas propostas e a mediocridade dos seus candidatos. Se atentarmos às figuras embaraçosas de vários proponentes deste partido, por demais caricaturados nessa grande e complexa malha comunicacional que mete no mesmo saco media tradicionais e redes sociais, temos um panorama deprimente à vista.
   O verdadeiro “tesourinho deprimente” das autárquicas não é a propaganda tosca, não são os cartazes palermas nem as acções de campanha circenses, não é o circo das arruadas nem das autocaravanas nem das feiras nem dos festivais, é todo este clima de glorificação do mediano que atrai cada vez menos gente capaz para a política local. É esta “porra triste” de ir assistindo à degradação do confronto público, pasmando diante da ruína com sensação de impotência. Não admira que a abstenção ganhe terreno quando o ambiente é tão calculista e pragmático, este cheiro a podre do medo de mudança que acanha uns, desmotiva outros, abrindo alas à parvónia que era bom não vir a ser dona disto tudo. A reflexo começa agora, na ressaca pós-eleitoral.

1 comentário:

f disse...

sempre certeiro.