Poeta, romancista, contista, ensaísta, Abel Neves (n. 1956) é também
autor de mais de cinquenta peças para teatro. Trabalhou doze anos na Comuna -
Teatro de Pesquisa, tendo sido responsável, nessa companhia, pela disciplina de
Dramaturgia no Curso de Formação de Actores e Animadores Culturais entre os
anos de 1987 e 1989. Tem uma obra vasta e complexa, difícil de encaixar nesta
ou naquela tendência, uma obra que resiste a fórmulas simplificadoras de
catalogação. Durante largos anos publicado pelas Edições Cotovia, reuniu no
volume Além as Estrelas são a nossa Casa
(Outubro de 1999) trinta pequenos textos escritos para teatro, deixando em
aberto múltiplas possibilidades combinatórias desses textos para diferentes
espectáculos sob um mesmo título. Bem distinta é a obra simplesmente intitulada
Teatro (Companhia das Ilhas, Outubro
de 2015), onde coligiu oito das suas peças levadas à cena ao longo dos anos por
diferentes companhias. São elas Clube dos
Pessimistas (2010), Cruzeiro
(2015), Este Oeste Éden (2009), Flores Para Mim (2011), Nunca Estive em Bagdad (2006), Olhando o Céu Estou em Todos os Séculos
(2012), Purgatório (2015), Querido Che (2007). As datas dizem
respeito aos anos em que os espectáculos foram montados pela primeira vez, não
sendo certo o ano em que os textos surgiram.
Mais recentemente, Abel Neves tem vindo a publicar o seu teatro nas Edições Húmus. Aí reencontramos, entre muitos trabalhos inéditos, a peça Nunca Estive em Bagdad, inicialmente publicada na Revista Galega de Teatro (2010) e posteriormente traduzida para alemão, castelhano, francês, húngaro, inglês, polaco e romeno. É apenas um exemplo da universalidade deste teatro e do interesse que pode gerar aquém e além-fronteiras. Tendo como pano de fundo a invasão do Iraque em 2003, a qual entra pela vida de um casal através do televisor omnipresente, o texto explora o lado disfuncional da vida doméstica a partir de um casal em absoluto desnorte. Espaços íntimos desorganizados são comuns neste teatro, embora aqui se estabeleça a dado momento uma espécie de paralelismo entre a desarrumação do mundo e a desarrumação do ambiente doméstico. A vidinha e os acontecimentos históricos interpenetram-se com violência, o social agride irreversivelmente a individualidade deslocando as personagens para um labirinto interior que sugere a ausência de rumo. No final, Glória quer ir à terra do pai sentar-se ao pé dos vidoeiros. É o horizonte de esperança que sobra, o último reduto da paz interior.
Tratando-se de objectos singulares, dificilmente analisáveis de um ponto de vista unívoco, empenhado em encontrar homogeneidade onde, na verdade, existe uma desafiante heterogeneidade, não deixam estes de ser textos entre os quais podemos estabelecer pontes, por neles vislumbramos situações comuns ou circunstâncias existenciais que oferecem a personagens dissemelhantes condições que as aproximam de uma leitura do mundo desencantada. Mesmo numa peça como Querido Che, assaltada pela utopia da personagem retratada, há como que uma janela que se abre ao desencanto, não tanto pelo fim conhecido de Che Guevara, mas sobretudo pelo modo como nos apercebemos da incompatibilidade entre os grandes ideais e o amor. «E por que é que eu não posso ser um ideal?», questiona Angelita antes de Che declarar o seu amor à Revolução. Neste teatro, a simplicidade de Epicuro e a vida feliz de Séneca surgem sob ameaça, tendo como principal inimigo a suposição de uma normalidade que marginaliza os indivíduos e os isola no interior de si mesmos.
O drama não está, portanto, nas opções feitas, mas em tudo quanto se exclui ao fazer-se uma opção. Na tragicomédia Clube dos Pessimistas isso mesmo é tratado a partir de um olhar profundamente irónico, no contexto paradoxal do quanto pior melhor. Estar bem-disposto é entrar em crise, a realidade inclina-se, a sociedade e a vida social são uma ameaça premente à estabilidade íntima. É outro aspecto comum a estas peças, a desconfiança suscitada pelas instituições tradicionais e pelos ideais universalistas. A família descompensada de Cruzeiro, magnífica peça, é colocada num ambiente rural. Estamos longe das divisões tradicionais entre campo e cidade. O patriarca desta família é a crueldade em pessoa pelo egoísmo que destila e pela manifesta ausência de empatia pelo outro. Não há absolutos que não sejam questionáveis a partir dos exemplos fornecidos por estes textos, estejamos a falar do amor ou da liberdade. Há situações. E dentro delas há personalidades, incertas, instáveis, contingentes. Ou, como diz o Josen de Este Oeste Éden: «Por muito que façamos nunca conseguiremos deixar de parecer humanos.» Talvez este seja mesmo o único absoluto com o qual podemos contar.
Mais recentemente, Abel Neves tem vindo a publicar o seu teatro nas Edições Húmus. Aí reencontramos, entre muitos trabalhos inéditos, a peça Nunca Estive em Bagdad, inicialmente publicada na Revista Galega de Teatro (2010) e posteriormente traduzida para alemão, castelhano, francês, húngaro, inglês, polaco e romeno. É apenas um exemplo da universalidade deste teatro e do interesse que pode gerar aquém e além-fronteiras. Tendo como pano de fundo a invasão do Iraque em 2003, a qual entra pela vida de um casal através do televisor omnipresente, o texto explora o lado disfuncional da vida doméstica a partir de um casal em absoluto desnorte. Espaços íntimos desorganizados são comuns neste teatro, embora aqui se estabeleça a dado momento uma espécie de paralelismo entre a desarrumação do mundo e a desarrumação do ambiente doméstico. A vidinha e os acontecimentos históricos interpenetram-se com violência, o social agride irreversivelmente a individualidade deslocando as personagens para um labirinto interior que sugere a ausência de rumo. No final, Glória quer ir à terra do pai sentar-se ao pé dos vidoeiros. É o horizonte de esperança que sobra, o último reduto da paz interior.
Tratando-se de objectos singulares, dificilmente analisáveis de um ponto de vista unívoco, empenhado em encontrar homogeneidade onde, na verdade, existe uma desafiante heterogeneidade, não deixam estes de ser textos entre os quais podemos estabelecer pontes, por neles vislumbramos situações comuns ou circunstâncias existenciais que oferecem a personagens dissemelhantes condições que as aproximam de uma leitura do mundo desencantada. Mesmo numa peça como Querido Che, assaltada pela utopia da personagem retratada, há como que uma janela que se abre ao desencanto, não tanto pelo fim conhecido de Che Guevara, mas sobretudo pelo modo como nos apercebemos da incompatibilidade entre os grandes ideais e o amor. «E por que é que eu não posso ser um ideal?», questiona Angelita antes de Che declarar o seu amor à Revolução. Neste teatro, a simplicidade de Epicuro e a vida feliz de Séneca surgem sob ameaça, tendo como principal inimigo a suposição de uma normalidade que marginaliza os indivíduos e os isola no interior de si mesmos.
O drama não está, portanto, nas opções feitas, mas em tudo quanto se exclui ao fazer-se uma opção. Na tragicomédia Clube dos Pessimistas isso mesmo é tratado a partir de um olhar profundamente irónico, no contexto paradoxal do quanto pior melhor. Estar bem-disposto é entrar em crise, a realidade inclina-se, a sociedade e a vida social são uma ameaça premente à estabilidade íntima. É outro aspecto comum a estas peças, a desconfiança suscitada pelas instituições tradicionais e pelos ideais universalistas. A família descompensada de Cruzeiro, magnífica peça, é colocada num ambiente rural. Estamos longe das divisões tradicionais entre campo e cidade. O patriarca desta família é a crueldade em pessoa pelo egoísmo que destila e pela manifesta ausência de empatia pelo outro. Não há absolutos que não sejam questionáveis a partir dos exemplos fornecidos por estes textos, estejamos a falar do amor ou da liberdade. Há situações. E dentro delas há personalidades, incertas, instáveis, contingentes. Ou, como diz o Josen de Este Oeste Éden: «Por muito que façamos nunca conseguiremos deixar de parecer humanos.» Talvez este seja mesmo o único absoluto com o qual podemos contar.
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